Um balanço historiográfico sobre a filmografia de Patricio Guzmán
- Fábio Monteiro
- 20 de jul. de 2022
- 17 min de leitura
RESUMO: O presente artigo foi elaborado em 2019 especialmente para o 30º Encontro Nacional da ANPUH. O seu propósito é oferecer um balanço das pesquisas sobre o cinema do documentarista chileno Patricio Guzmán (1941) até aquele momento.
PARA SABER MAIS SOBRE O 30º SIMPÓSIO DA ANPUH: https://www.snh2019.anpuh.org/site/anais

INTRODUÇÃO
O presente artigo foi extraído da pesquisa de doutoramento em História Social e da Cultura em andamento desde o início de 2018. Dentre seus propósitos, está um balanço historiográfico brasileiro da produção fílmica de Patricio Guzmán rastreando os avanços e limites teóricos e metodológicos presentes em torno de sua produção documental. Além disso, pretende-se identificar os vestígios e recorrências de uma cinematografia em andamento.
Patricio Guzmán é, atualmente, o documentarista chileno de maior envergadura internacional. Prestes a completar 78 anos de idade, ele acabou de lançar “A Cordilheira dos Sonhos”, que recebeu o prêmio L’Oeil D’or concedido ao melhor documentário no Festival de Cannes. O filme tem sido recebido pela crítica como a conclusão de uma trilogia composta por “Nostalgia da Luz” e “O botão de nácar”, lançados em 2011 e 2015, respectivamente.
Porém, quando colocado em perspectiva, o filme pode ser visto como a síntese de uma “terceira trilogia” que apela para as fronteiras geográficas naturais do Chile para elaborar algo além de uma poética do espaço, no sentido bachelardiano do termo, também uma poética do testemunho. Em outras palavras, se em “A Batalha do Chile” temos uma “trilogia da crônica”[1] da ascensão e declínio do Governo Allende e da Unidade Popular, o conjunto dos filmes “Chile, memória obstinada” (1997), “O Caso Pinochet” (2001) e “Salvador Allende” (2003) compõem uma segunda trilogia, a da “memória”[2], no sentido ambivalente do termo, enquanto a atual trilogia, a da “poética” evoca o deserto, o mar e a cordilheira como dispositivos de repetição de temas como “memória, exílio, democracia e autoritarismo”, entre outros.
Diante desta hipótese, este artigo representa uma dimensão fundamental da nossa pesquisa de doutoramento, pois pretende-se dialogar com as questões colocadas por José Carlos Reis[3] como, por exemplo, quais seriam as condições epistemológicas do estudo da história? Ou melhor, posto dentro de nosso contexto: de que maneira um levantamento historiográfico sobre os usos e limites dos filmes de Guzmán nos informam sobre a historicidade da sociedade chilena? Ou como a problematização desse objeto demarcado – um conjunto de publicações e estudos acadêmicos sobre a cinematografia de Patricio Guzmán – permite levantar hipóteses, dilemas, esclarecimentos e lacunas dentro do horizonte dos estudos históricos sobre o Chile contemporâneo.
Tem-se em vista que as respostas a estas questões são possíveis e, mesmo que parciais, elas são capazes de impulsionar novas indagações e promover novos horizontes de interpretação a respeito da obra cinematográfica como um artefato cultural passível de iluminar as condições de uma determinada realidade histórica. O sentido de historiografia aqui é emprestado de D’Assunção Barros quando toma como fontes históricas uma série de publicações e estudos acadêmicos[4] de diferentes campos do saber que assumiram o propósito de tomar como objeto de análise o cinema ou a cinematografia de Patricio Guzmán como objeto de estudo.
Em síntese, o propósito então é identificar as ressonâncias e as distinções entre as pesquisas já realizadas, como também mapear suas áreas de atuação, os conceitos e categorias em jogo, os avanços e limites trazidos pelos seus fundamentos teóricos e metodológicos, assim como verificar as hipóteses iniciais que consideram como a cinematografia de Guzmán envolve a tarefa de rememoração social comprometida com uma voz fílmica pessoal que transita entre a política e a poética.
AS PUBLICAÇÕES DISPONÍVEIS
De início, faz-se necessário dizer que se deu prioridade: i) às obras já publicadas comercialmente e ii) estudos acadêmicos de pós-graduação que dão protagonismo à obra fílmica de Guzmán. Quanto às publicações consagradas, é preciso dizer que, em maior ou menor grau, elas envolvem a participação direta do próprio cineasta.
i) Em 2001, a coleção Signo e Imagem da editora espanhola Cátedra, dedicada ao estudo de cineastas latino-americanos, publicou “Patricio Guzmán”, de autoria de Jorge Ruffinelli, uruguaio radicado nos Estados Unidos e vinculado à Universidade de Stanford.
Com um recorte que abarca desde as condições históricas chilenas das décadas de sessenta e setenta, o livro tem o afã de sintetizar uma “vida e obra” do cineasta à medida que vincula as análises de condições de produção dos filmes aos seus devidos contextos históricos.
Além de cobrir desde a primeira produção chilena de Guzmán – o filme “El primer año” (1971) produzido a partir das condições da Chile Films, instituição vinculada à Unidade Popular de Salvador Allende – até a sua última obra até aquele momento – “El Caso Pinochet” (2001) –, a obra ainda oferece dois capítulos que dão voz ao próprio cineasta: o penúltimo intitulado “conversas com Patricio Guzmán” e o último intitulado “Ensayos sobre el documental”, o qual é composto por um texto no qual o realizador descreve e analisa os fatores que compõem o seu método de trabalho – e que se repetirá em outras publicações, como veremos a seguir.
ii) O mesmo texto de Jorge Ruffinelli foi atualizado e participou de uma nova coleção dedicada ao cinema, desta vez da editora chilena Uqbar. Intitulada “El cine de Patricio Guzmán: em busca de las imágenes verdadeiras”, ela foi publicada em 2008 e traz como novidade uma introdução chamada “Salvador Allende forever”, na qual Ruffinelli incluiu uma análise fílmica da obra homônima ao ex-presidente chileno e lançada em 2003, no seio das efemérides em torno dos trinta anos do golpe militar encabeçado por Pinochet.
Ruffinelli inicia o texto reconhecendo que tanto o filme “Chile, memória obstinada” (1997) quanto “Salvador Allende” (2003) são obras que pagam seu tributo à trilogia “A Batalha do Chile”. Isto é, em suas palavras, aquela primeira trilogia seria um “repositório incalculável de imagens, pois explica por si mesma a existência de um Chile quase desparecido pela ação deliberada da ditadura de Augusto Pinochet e pela cruel máquina de amnésia política coletiva”[5].
Os avanços e impasses da conciliação social levada a cabo pelo Informe Rettig e Informe Valech[6] no Chile através dos anos noventa, tornam o filme “Salvador Allende” uma expressão da “constante luta da memória contra a amnésia”, um fator importante levando em conta que esta foi a primeira obra de Guzmán a estrear nos circuitos comerciais de cinema, não se restringindo aos festivais. Assim, com este texto de 2001 atualizado em 2008, Ruffinelli se posiciona como pioneiro na busca de uma síntese da “vida e obra” de Guzmán. Com o tom jornalístico das obras que visam ao grande público, ele traça sinais de uma interpretação de longo prazo a respeito da cinematografia do cineasta, como quem busca compreendê-la como um grande arco narrativo sobre a sociedade chilena contemporânea.
iii) Por sua vez, a pesquisadora Cecilia Ricciarelli publicou em 2010, pelo selo FIDOCS – selo editorial do Festival Internacional de Documentário de Santiago, fundado pelo próprio Guzmán no ano de 1997 - a entrevista “El cine documental de Patricio Guzmán” que trouxe à tona uma conversa informal sobre os bastidores e o processo de produção de seus filmes. Uma segunda edição já atualizada foi publicada em 2011, contendo também um artigo de “última hora” a respeito de “Nostalgia de la luz” - além do roteiro do filme que havia sido lançado naquele mesmo ano.
A edição registra o próprio cineasta como coautor, sendo que a pesquisadora informa que as conversas entre eles foram iniciadas no ano de 2006 após ela ter tido contato com o filme “Salvador Allende”. Entre seus capítulos, encontram-se dois títulos que avançam em relação às interpretações da obra do realizador: o primeiro capítulo intitulado “El documental como práctica del conocimiento” e o terceiro intitulado “La trilogia de la memoria”.
Como o título informa, Ricciarelli[7] registra o caráter epistemológico que o cinema documentário de Guzmán contém, ou como ela mesma declara: “os seus temas o obrigam a tomar posição, a comprometer-se, a buscar o seu ponto de vista tanto para contar a história como para construir a imagem; finalmente, o obriga a participar da realidade que descreve”. E segue mais adiante no mesmo capítulo: “Para Guzmán, o cinema documentário forma parte da consciência crítica e analítica de uma sociedade”[8]. Ou seja, tendo em vista o horizonte historiográfico pretendido pelo artigo, tem-se o reconhecimento do que Nichols chamou de “epistemofilia”[9], a capacidade que o cinema documentário tem de provocar nos espectadores o encanto pelo conhecimento de determinadas realidades históricas. Em outras palavras, a obra fílmica de Guzmán é tomada como se ensejasse em si as contradições sociais, econômicas e ideológicas capazes de promover condições de conhecimento e tomada de posição acerca da realidade histórica chilena e, consequentemente, internacional.
O segundo passo promovido pela publicação trata-se da elaboração crítica do termo “trilogia da memória”: nesse momento, durante a conversa com Guzmán, Ricciarelli sugere a consideração de “duas trilogias” dentro de sua cinematografia, aquela primeira composta pela “A Batalha do Chile” e uma segunda composta pelos filmes que permeiam a virada dos anos noventa para os anos dois mil. Como dissemos na introdução, seriam eles “Chile, memória obstinada” (1997), “O caso Pinochet” (2001) e “Salvador Allende” (2003).
De acordo com a autora, o filme de 1997 promoveu um turning point na carreira do cineasta, pois existe uma inflexão da posição do autor em relação ao tema, pois “a história do país se sobrepõe naturalmente a história do homem e do realizador, e a memória coletiva, os sentimentos e as lembranças daquela geração se mesclam com a sua própria memória”.[10] Este ponto de virada foi problematizado por nós no artigo “El Salvador Allende de Guzmán – entre la memoria y el testimonio”, apresentado no Segundo Encontro de Investigadores de Cine Mexicano e Ibero-americano, em 2016.
iv) A penúltima publicação listada é o livro “Filmar lo que no se ve”, cujo subtítulo conclui “uma manera de hacer documentales”. Publicada em 2013 pelo selo FIDOCS e lançada no Brasil pela Editora SESC em 2017, a obra é de autoria do próprio realizador e, ao longo de seus catorzes capítulos, reúne e redistribui textos já publicados naquelas duas primeiras obras de Ruffinelli já elencadas acima. Além disso, a obra reúne na seção “artículos y reseñas” textos publicados ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000 e passaram por um processo de “correção” ou “revisão” especialmente para esta edição, conforme indicam suas notas de rodapé. Em suma, o mérito desta publicação está no fato de reunir em material impresso os textos autorais do cineasta já publicados e distribuídos em diferentes plataformas, tanto físicas quanto digitais.
v) Por fim, vale registrar que lançamos em 2016 o livro “A história de Salvador Allende no cinema de Patricio Guzmán” que, até o presente momento, é a única publicação em língua portuguesa sobre o cineasta. Ao tomar como ponto de partida o filme “Salvador Allende”, o livro recorre a história contemporânea do Chile, assim como analisa como o filme revela as diferentes memórias sociais comprometidas com o Governo Allende.
QUATRO ESTUDOS BRASILEIROS
Já em relação à situação dos estudos brasileiros sobre a obra de Guzmán, a presente investigação se deparou com três dissertações de mestrado defendidas em departamentos de Comunicação e uma em um Departamento de Ciências Sociais: a de Cláudia Lapouble, que foi defendida no Departamento de Comunicação Social da UFMG em março de 2014; a de Thiago Lopes Rios, defendida no Departamento de Comunicação Social da PUC/RJ em abril de 2014; a de Luís Villaça, defendida na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo em 2015 e a de Bruno Vilas Boas Bispo, defendida no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, em 2016.
i) Intitulada “Tramas da Cordilheira: tessituras entre identidade e cinema documentário contemporâneo na região andina a partir de características estilísticas”, Lapouble tem o referencial teórico de Bordwell, teórico da história do estilo, como aporte metodológico para analisar “o homem andino encenado” e suas “relações com a identidade latino-americana” em diálogo com as contribuições conceituais de Barbero e Canclini sobre os estudos culturais contemporâneos. Para tanto, a autora centra-se na análise de três elementos fílmicos: i) a atuação dos atores, ii) os cenários e iii) os enquadramentos a fim de compreender como a obra de Guzmán configura uma identidade latino-americana no contemporâneo.
O estudo divide-se em três capítulos, sendo que o primeiro mapeia os estilos documentários já desenvolvidos na região para identificar “certas composições cinematográficas que apontam para uma marca andina”. Em diálogo com Nichols (1995), Penafria (2010) e Ramos (2011), ela traça uma continuidade entre as obras dos bolivianos Jorge Ruiz e Sanjínez como extensões do que chama de “filmes indigenistas” em busca da afirmação de um compromisso estético e político ao longo do século XX.
Por sua vez, o segundo e o terceiro capítulos problematizam as possibilidades teóricas já apresentadas para, em suas palavras, “fazer um mapeamento que nos leve a identificar como o documentarista andino, vindo de uma sociedade cuja cultura é híbrida, apreende uma realidade e a partir de seu olhar e suas escolhas estilísticas a apresenta no cinema, mais especificamente no documentário” (p.64)
Em síntese, a sua análise considera que em Nostalgia da Luz “a narrativa é pessoal, o sujeito cineasta, sujeito latino-andino não se nega em cena, ele se coloca como interlocutor de seus semelhantes (...) portadores das marcas do violento passado da ditadura de Pinochet”. (p.86)
Quanto às conclusões acerca do que considera a “identidade andina”, a autora busca respaldo nos estudos de Hall e Bauman para afirmar que “ao vermos em tela sujeitos dispostos a olhar para seu passado em busca de superar as marcas que esse deixou, marcas em seu corpo, em sua mente, em suas famílias” encontra-se “a construção de identidades individuais e de grupos como produto de um trabalho de bricolagem, de pequenos relatos, imagens que se associam”. (p.97)
E, diante da possibilidade de teorizar sobre uma “nostalgia restauradora” e uma “nostalgia reflexiva”, o filme seria um exemplo dessa última porque ela “se compõem de tramas múltiplas, intenta temporalizar o espaço, oferece a possibilidade de imaginar o passado e adquire certa dimensão utópica em sua projeção do futuro”. (p.102)
ii ) A dissertação de Lopes Rios, intitulada “O cinema arqueológico de Patricio Guzmán” se propõe a estudar as relações entre “Chile, memória obstinada” e “Nostalgia da Luz” para observar o que ele chama de “gesto arqueológico”: um esforço de construção de “narrativas, atos corporais de memórias e objetos comemorativos” que investem numa memória de resistência política.
Dividido em três partes, a introdução da pesquisa trata dos anos iniciais de Guzmán até a produção de “A Batalha do Chile”. Por sua vez, o segundo capítulo intitulado “Chile, memória obstinada – uma ponte por cima da ruptura” analisa como o realizador investiu numa forma de participação mais atuante, “reflexiva” e passível de ser lida pelo viés da “pós-memória”. Citando Hirsch, o autor afirma que esta categoria “descreve, mais especificamente, o relacionamento dos filhos dos sobreviventes de um trauma coletivo ou cultural com as experiências de seus pais, experiências que eles "lembram" apenas enquanto narrativas e imagens com as quais eles cresceram, mas que são tão fortes, tão monumentais, que constituem memórias por si só”. (p. 17) Para Lopes, esses filmes “antecedem vários gestos que estão presentes em Nostalgia da Luz”, que tem como premissa que “o gesto arqueológico” seria sua vontade de ativar a memória através de resquícios, ruínas e artefatos visuais, que vincula o presente a períodos históricos anteriores”, algo comum no cinema de Guzmán nos últimos anos. (p.17)
Após transitar com habilidade entre as categorias benjaminianas como “experiência”, “transmissão” e o seu conceito de “história a contrapelo”, Lopes conclui que o tal “gesto arqueológico não está apenas na estrutura do documentário, mas também nas próprias ações dos personagens (isso inclui o diretor) e dos locais explorados. São os vestígios e rastros que originam muitas vezes o discurso sobre os acontecimentos passados.” (p. 92)
Entretanto, talvez seja válido apontar que, aos olhos do ofício da História, o estudo apresenta momentos que poderiam ser melhor discutidos, a exemplo de quando Lopes considera que o cinema de Guzmán é marcado pelo que chama de um “senso de dever de memória”, algo de fundo kantiano, ao mesmo tempo em que evoca os estudos de Beatriz Sarlo para justificá-lo. Ou mesmo quando põe lado a lado o conceito de história benjaminiano com os fundamentos sociológicos de Halbwachs acerca da categoria memória.
iii) A dissertação de Luís Villaça é intitulada “Nostalgia da Luz e o filme-ensaio: uma proposta de análise a partir da trajetória cinematográfica de Patricio Guzmán”. Nela, o autor se propõe as seguintes questões: “como Guzmán se apropria das matérias de expressão para narrar uma história? É possível identificarmos a elaboração de um pensamento próprio através das nuances que encontramos na elaboração discursiva do filme? Em quais aspectos as escolhas que ele faz se repetem, em alguma medida, na realização de Nostalgia da Luz, no entendimento de uma suposta inscrição audiovisual ensaística? (p. 56)
Os filmes “A Batalha do Chile III - O poder popular” (1979) e “Chile, a memória obstinada” (1997) compõem o corpus da pesquisa e emprestam seus nomes aos capítulos para que Villaça compreenda “Nostalgia da Luz” como um filme-ensaio, sendo ele compreendido como a síntese da evolução da cinematografia de Guzmán, ou em suas palavras, como o “ponto de chegada formal de seu percurso, marcado por abordar assuntos relevantes da história contemporânea” (p.12).
De fundo, a perspectiva de uma evolução de performance fílmica é elaborada tendo em vista que, além de apresentar temas já expostos nos filmes anteriores, tais como “violência das ações do Estado militar1; a memória individual (a dele e a dos que são por ele entrevistados); a memória coletiva e as características peculiares da cultura, da política e da paisagem chilena”, o filme “Nostalgia da Luz” contém novas “matérias de expressão” que Guzmán “vai sucessivamente utilizando em seus filmes: a concepção da imagem, as técnicas de registro documental, os modos como realiza a montagem, o uso da voice-over, a maneira como ele se apropria de imagens de arquivo, os modos de entrevista e registro de depoimentos, a escolha e a abordagem de temas e o uso do som e da imagem como elementos expressivos.” (p.72)
Em síntese, nas palavras de Villaça, em O poder popular (1979) “o nítido registro factual é um elemento predominante”; em Chile, a memória obstinada (1985), a sua própria obra se tornou “um recurso de rememoração ao projetá-lo para um grupo de pessoas e na tentativa de elaborar uma miscelânea de pensamentos sobre o passado político do Chile”. E, após um debate exaustivo do conceito de “filme-ensaio”, Villaça considera que “Nostalgia da Luz” é um “filme-ensaio” por várias razões, sendo elas: i) a ausência de clara distinção entre o que é documentário e criação ficcional; ii) a densidade poética amparar a narrativa tensa; iii) pluralidade temática; iv) a utilização de materiais e recursos heterogêneos; v) não se limitar a mera representação do fato histórico mas querer elaborar uma reflexão sobre ele; vi) por haver uma subjetividade pensante; vi) a associação livre dos objetos do olhar do diretor; (p.79)
iv) Por último, o estudo de Bruno Vilas Boas Bispo foi defendido no Departamento de Ciências Sociais e se chama “As imagens da utopia no cinema de Patricio Guzmán”. Dividida em quatro capítulos, a pesquisa traça um histórico do conceito de documentário e de suas expressões cinematográficas latino-americanas em suas duas primeiras partes. O terceiro capítulo é o seu momento mais forte, posto que nele são desenvolvidas com bastante interesse as categorias de “esperança” e “utopia” extraídas da obra de Ernest Bloch e que, de acordo com o autor, serão “referências para análise estética” para o estudo das representações da utopia na trilogia “A Batalha do Chile”. (p.47)
Intitulado “A batalha enquanto perspectiva de construção de mundo”, o capítulo apresenta argumentos como “a utopia seria justamente uma das possibilidades de futuro construídas no presente, podendo ou não ter uma vinculação direta com as possibilidades materiais presentes no mundo”. Nessa direção, o autor segue afirmando que “analisar a representação da Esperança na produção cinematográfica se faz interessante, pois, nas palavras de Bloch (2005): “o filme está repleto do mais puro sobe-e-desce do movimento refletido pelo sonho ideal ou – movimentos desejados e reais das tendências de época [...]” (p.48) Mais adiante, a pesquisa reitera que “as representações da fantasia utópica, por sua vez, não comporiam tão somente o que já existe, mas, também, o que dá continuidade, de modo antecipatório, ao que existe nas possibilidades futuras, representações que seriam ao mesmo tempo diferentes e melhores do que o presente oferece”. (p.69)
Em resumo, após um histórico da via chilena ao socialismo, as últimas 73 páginas são dedicadas para a análise fílmica de toda a primeira trilogia de Guzmán. Nesse momento, os resultados são afirmações como “as manifestações favoráveis à Unidade Popular são retratadas como uma grande festa militante. Como se o momento propiciasse a esperança no aprofundamento das mudanças que vinham ocorrendo no país. Tais falas claramente apontam para uma nova realidade, a concretude das palavras que se refiram ao avanço das melhorias de vida através da luta”. (p.86)
Talvez no afã de reforçar seu substrato conceitual, isto é, o diálogo dos registros fílmicos documentais de Guzmán com as categorias Utopia e Esperança em Bloch, Bispo destaca duas personagens do filme que, quando questionadas se a via eleitoral é a melhor, dizem que “com qualquer resultado, vamos continuar ferrados” e outra que afirma que “o futuro do Chile sempre foi promissor”. Para o pesquisador, esses são os “os sujeitos da conservação”, pois “falam a partir do passado”, são donos de uma “fala que remete a uma potência sem um sujeito que aja para sua efetivação” sendo que eles “foram fotografados até aqui em uma expressão sisuda, grave, quase tétrica”, enquanto, por outro lado, “sendo retratada de forma mais leve, alegre e senhora de si, há uma classe que fora historicamente expropriada e subordinada, e que, num processo de avanço de sua consciência, constrói um projeto de superação da sua subordinação”. (p.87)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não seria demais considerar que a presente investigação tem sido margeada pelas robustas pesquisas de Carolina Aguiar que aborda temas correlatos às atividades cinematográficas dedicadas ao exercício da solidariedade internacional ao Governo Allende. Assim como as publicações de Ignacio Dávila e Fabián Nuñez que, dentre outras coisas, se dedicam a um esforço de revisão historiográfica do chamado “Novo Cinema Latino-americano” no sentido de revelar a diversidade de suas contradições tanto teóricas quanto práticas. Por sua vez, os artigos de Cristiane Grumm são uma companhia nas rotas que essa pesquisa presente pesquisa tem traçado.
Conforme apontado inicialmente, o presente artigo registrou um balanço historiográfico das publicações e estudos acadêmicos brasileiros que assumem a cinematografia de Patricio Guzmán, em suas múltiplas dimensões, como meio de conhecimento das condições históricas da sociedade chilena contemporânea. Quanto aos estudos internacionais, é válido registrar que deles participam nomes como Julien Joly, Juan Carlos Rodriguez, Ana Triviño, Valeria Valenzuela, Marcarena Barriz, Isis Sadek, Marina Lopez, Julieta Vitullo, Patrick Blaine.
Diante desse levantamento, algumas conclusões provisórias são possíveis:
a) a presença do próprio realizador é uma constante no cenário literário-teórico que se dedica à análise de sua cinematografia. Este quesito ainda é algo a ser mais bem compreendido pela pesquisa em andamento: é possível que ele seja um fator que contribua para a melhor compreensão de seu “fazer fílmico” ou mesmo até nas condições de recepção de suas obras;
b) nota-se a recorrência a conceitos e categorias filosóficas, literárias ou mesmo semióticas como chaves analíticas das funções sociais de seus filmes; dito de outra forma, é comum encontrar ressonâncias de trânsitos interdisciplinares como processos interpretativos das ancoragens históricas que seus filmes permitem;
c) dentre os conceitos mais recorrentes estão: “memória”, “voz over”, “exílio” e “testemunho”. Quanto às categorias, pode-se dizer que é comum encontrar ecos de chaves psicanalíticas, tais como “espectralidade”, “interditos” e “trauma”;
Apesar de se ter essas referências como centrais, reforça-se a necessidade de aprofundamento das investigações sobre o cinema de Patricio Guzmán nos países do Cone Sul latino-americano. Nesse sentido, é possível dizer que não há um acervo fílmico ou mesmo de imagens fixas da obra do realizador Patricio Guzmán no Museu da Memória do Chile. Nas três visitas realizadas, em 2013, 2016 e 2018, os contatos que a pesquisa teve com os curadores foram marcados pelas considerações de que o realizador não cede seus filmes e imagens gratuitamente, condição jurídica primeira para a aquisição de acervo do Museu.
Dado esse recorte provisório, crê-se pertinente apontar a lacuna no rol de dissertações e teses de maior envergadura conceitual sobre o conjunto da cinematografia de Patricio Guzmán, particularmente no Brasil. Assim, a presente pesquisa segue adiante a fim de justificar a sua relevância dentro dos marcos propostos pelo próprio realizador considerando “Chile, memória obstinada”, “O caso Pinochet” e “Salvador Allende” partes de um mesmo argumento fílmico, mas para superar os estudos citados acima, assim como as recorrentes avaliações feitas pelo realizador a respeito de sua própria obra fílmica.
Por outro lado, quanto à categoria “trilogia” como chave interpretativa de sua obra, o cineasta diz ser uma “construção de críticos”. Porém, apesar da negativa dessa intencionalidade, o realizador reconhece que “esses filmes acompanharam a história do Chile” [11]. De todo modo, as investigações seguem diante da ausência de outras pesquisas que cujas metodologias demonstrem esforços semelhantes, o de analisar uma unidade formal argumentativa e estilística nas chamadas “segunda e terceira trilogia”.
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[1] Emprestamos a categoria de Lejeune, Philippe. O pacto autobiográfico, 2008 a fim de sistematizar o conhecimento. [2] RICCIARELLI, C. El cine documental segundo patricio guzmán. Santiago: FIDOCS, 2011 [3] REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. RJ; FGV, 2010. P. 12 [4] D’ASSUNÇÃO BARROS, J. Teoria da História. RJ: Vozes, 2014. P. 10 [5] RUFFINELLI, J. “El cine de Patricio Guzmán: em busca de las imágenes verdadeiras”. Santigo: Uqbar, 2008, p. [6] Ambas iniciativas, a primeira lançada em 1991 e a segunda em 2003 estão inseridas no horizonte das Comissões Nacionais da Verdade latino-americanas, cuja pesquisa ainda está em andamento. [7] Cecilia Ricciarelli é doutorada em Études cinématographiques pela Université de la Sorbonne, Paris 3. [8] RICCIARELLI, C. El cine documental según Patricio Guzmán. Santiago: FIDOCS, 2011 p. 10 [9] NICHOLS, B. idem [10] RICCIARELLI, C. El cine documental según Patricio Guzmán. Santiago: FIDOCS, 2011p. 52 [11] Depoimento concedido no Workshop intitulado “Paixão de memória”, realizado no Cine Belas Artes na cidade de São Paulo, em outubro de 2017.
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