Curso de "Introdução ao Cinema Documentário"
- Fábio Monteiro
- 22 de jul. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 5 de out. de 2023
RESUMO: O presente artigo é a "Introdução" da apostila do Curso de Introdução à História do Cinema Documentário, lançado em parceria com o Cinemascope e cujas inscrições seguem abertas. A apostila consiste 04 capítulos que versam sobre os fundamentos teóricos e os desdobramentos históricos dos filmes documentários ao longo de cerca de 40 págs. Por sua vez, o curso consiste em mais de 25 aulas que somam 8,5 horas de duração, sendo o mais completo curso sobre Cinema Documentário disponível no Brasil.

Agnès Varda (1928-2019), uma das realizadoras debatidas no Curso de Introdução ao Documentário
O ano era 1922. Naquele momento, Nannok of the north ganhou projeção pública e detonou uma nova compreensão sobre as dimensões das imagens cinematográficas. Realizado pelo fotógrafo e expedicionário Robert Flaherty, o subtítulo do filme apelava ao espírito romanesco ao dizer “uma história de vida e de amor no atual Ártico”. Como se lê, o filme queria nos aproximar de uma história romanceada que se passava em algum lugar distante presente naqueles tempos.
Mesmo se valendo de recursos tradicionais como as famosas cartelas de letreiros, mapas e uma montagem à maneira griffithiana priorizando a continuidade de tempo e de espaço, o filme deu ensejo ao reconhecimento do filme como um documento histórico, ou melhor, como um documentário. O reconhecimento territorial da família esquimó, a posta em cena de seus afazeres cotidianos e a velha luta entre “o homem e a natureza” que mobiliza os nossos afetos desde as narrativas épicas de Ulisses passando pelas vozes do marinheiro Ismael e seu capitão Ahab na luta contra a cachalote: temos aí um conjunto de estratégias narrativas que pretendiam posicionar o cinema em uma nova perspectiva, um olhar que buscava uma realidade “tal como ela é”.
Como se soube mais tarde, a realidade do filme de Flaherty foi construída: ele conviveu por longos anos com os Inuiks, manejou suas técnicas de caça e pesca e seus recursos de subsistência a fim de elaborar um filme sobre a condição humana em estado de natureza. O britânico John Grierson teria sido quem melhor contribuiu para a estabilização dos debates acerca daquelas novas imagens cinematográficas: o documentário seria então o “tratamento criativo da realidade”.
Enquanto isso, naquele mesmo 1922, Adolf Hitler abria o seu primeiro mandato como presidente do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e um ex-jornalista italiano marchava sobre Roma com seus asseclas vestidos de camisas negras ameaçando o reinado de Vitorio Emanuel III. A sensação de insegurança social, as crises inflacionárias e os nacionalismos davam sinais de que o ressentimento pode ser uma força política decisiva: a ascensão do nazifascismo em escala europeia – e, por extensão, dos autoritarismos em escala internacional – tinha dentre seus propósitos a negação daquela realidade histórica posta em cena pelas ruínas da Primeira Grande Guerra e a idealização de um passado glorioso tendo em vista a construção de um futuro triunfante.
Fundado em 1924, o Instituto Luce (L’Unione Cinematografica Educativa, no original) se tornou a pioneira em nível internacional na produção e distribuição de obras audiovisuais com fins políticos e didáticos. A partir de então, o cinema documentário ganhou voz e propósitos biopolíticos, pois não bastaria a pretensão de registrar o cotidiano, a industrialização e os grandes acontecimentos, seria preciso mais: era necessário imbuir na população um determinado espírito cívico, isto é, um conjunto de valores que injetassem ânimo social, noções de saúde tanto biológica quanto física e maneiras de conduta almejando a união nacional.
Décadas mais tarde, no mesmo ano em que levantes populares derrubaram o Muro de Berlim, Peter Cohen destinou uma série de interrogações às imagens nazistas reunidas em uma insígnia perturbadora, a Arquitetura da destruição. Em um diálogo intenso com a noção de desencantamento do mundo teorizada por Max Weber e expandida por Adorno e Horkheimer, o documentarista demonstrou como o regime nazista assumiu como inspiração os valores greco-romanos tendo em vista o que consideravam uma espécie de “embelezamento do mundo”. Dito de outra forma, desencantar o mundo envolvia reunir todas as forças de racionalização social sob o comando do Estado. Nada poderia restar acima dele ou fora dele.
Visto de outro ângulo, em seu sentido etimológico, “arché” implica no reconhecimento daquilo que mina, daquilo que funda, do que revela a abertura, a emergência de uma natureza. Assim, em seu sentido forte, “arquitetura” envolve uma visão demiúrgica, uma conduta criadora de mundos e parteira de novas formas de vida. Com efeito, a investigação de Arquitetura da destruição procura revelar o processo de barbárie perpetrados pelo regime nazista sob o pretexto de ressurreição de um terceiro reinado alemão.
Nessas condições, a realidade histórica ganha encenação e coreografia para forjar a vontade de um povo: a tomada aérea de um sobrevoo sobre a pequena Nuremberg apresenta a eliminação do espaço público através da massa ornamentada para a recepção de Hitler. Por detrás das câmeras, uma jovem com cerca de trinta anos que, quando atriz, tentou disputar a atenção da indústria cinematográfica alemã com Marlene Dietrich.
Admirada por Hitler e invejada por Goebbels, Leni Riefenstahl provocou um deslocamento no entendimento sobre o cinema documentário, pois mesmo que afirme que seu cinema “é arte”, restam as dúvidas: seria possível desvencilhar a sua tomada de posição diante do mundo histórico dos princípios nazistas? Em que medida suas imagens também não contribuíram para forjar essa visão de mundo? Aliás, como mensurar a magnitude políticas das imagens cinematográficas?
Foi durante esses anos que Brecht denominou de “tempos sombrios” que o cinema se consolidou como uma linguagem artística, ganhou uma dimensão literária e teórica, além de ter se consolidado como uma indústria em escala internacional. Na Itália, Guido Aristarco se tornou um nome central do pensamento a partir do e sobre o cinema, tendo dentre suas referências as teorias de Lukács e de Gramsci. Na Alemanha, nomes como Siegfried Kracauer e Walter Benjamin se irmanaram não somente em vida como também entrelinhas na exploração da teoria crítica no rastro da constituição da Escola de Frankfurt por Adorno e Horkheimer.
Como podemos conferir no curso de Introdução à Linguagem Cinematográfica, a conformação da Revolução Russa perpassou as artes cinematográficas: nomes como Eisenstein, Pudovkin e Vertov, por exemplo, foram decisivos para que a revolução política e econômica também ganhasse robustez no campo da cultura e das mentalidades. Mesmo que debatessem se o cinema era, antes de tudo, montagem tendo em vista seus efeitos sobre os espectadores ou se ele seria, sobretudo, a revelação da realidade através de um “cinema-olho” que transcende a visão humana, Eisenstein e Vertov convergiam na crença de que as imagens cinematográficas seriam destinadas a uma práxis, ou seja, a uma ação transformadora de nossas condições históricas.
Seguindo o espírito universalista e enciclopédico dos iluministas franceses, Georges Sadoul começou a publicar a sua Histoire Générale du Cinema em 1946. O esforço de compilação, sistematização e síntese da chamada “sétima arte” envolvia também um projeto de estilo literário. Por sua vez, o cariz pragmático britânico levou o escocês John Grierson à produção de filmes que, em seu conjunto, formaram, por assim dizer, um corpus fílmico cujas características deram estabilidade ao que conhecemos como cinema documentário.
Dentre elas, pode-se citar o forte apelo institucional, as tomadas elaboradas a partir do mundo, a elaboração informativa e a crença na formação educativa dos espectadores. Esse terreno comum aos filmes tidos como documentários passou a sofrer fortes abalos a ao longo dos anos cinquenta e sessenta em decorrência de uma série de eventos. Dentre eles, podemos citar o desenvolvimento de câmeras leves e gravadores sincrônicos, a difusão da televisão e seus modos de comunicação e a emergência dos debates sobre pautas de costumes nos países ocidentais liberais.
Soma-se a esse “estado de coisas” a confluência cada vez maior entre os diferentes campos do saber: ao ser alçado como “objeto de estudo”, o cinema contribuiu para aumentar a porosidade entre as Ciências Humanas e Sociais, além de alimentar o desejo cada vez maior de ser interpretado e teorizado a partir dos referenciais teóricos das chamadas “ciências da subjetividade”.
Sendo uma expressão das contradições históricas, uma vez transformadas as condições históricas, desdobram-se também as práticas do cinema documentário. Na França, jovens intelectuais antenados com as vanguardas acadêmicas extrapolam os muros da universidade e experimentam os limites entre a “reapresentação” e a “representação” da realidade, a exemplo de La pointe courte, realizado por Agnès Varda em 1955.
Nos Estados Unidos, o sonho rooseveltiano de garantir estabilidade institucional e econômica a uma sociedade de classe média prosperou e ganhou longevidade após a vitória na 2º Guerra Mundial. Sob o signo da Guerra Fria, o ambiente jornalístico, suas práticas investigativas e um profundo interesse pela “América profunda” mobilizou jovens como Robert Drew e D.A. Pennebaker que apostaram num certo objetivismo do dispositivo cinematográfico. Olhar seria sinônimo de registrar e, por extensão, de deixar os fatos falarem por si mesmos, tal como Crisis finalizado por Drew em 1963.
Desde então, o cinema documentário foi marcado pelas cizânias entre ficção e documentário, entre reconstituição e demonstração, enfim pelos recursos que o aproximariam mais de um “cinema da verdade” ou de uma “verdade do cinema”, para falar como Chris Marker. Entretanto, tal como vimos no começo dessa introdução, é preciso colocar em perspectiva a própria acepção do termo, pois, em princípio, em certo sentido, todos os filmes podem ser denominados como “documentário” na medida em que documentam a sua própria historicidade.
Um exemplo disso seria encarar o longa-metragem Cidade de Deus, realizado por Fernando Meirelles em 2002, como documento de um momento de inflexão do cinema brasileiro, pois ali se encontra a absorção de tecnologias digitais, o recurso a não-atores, a renovação do que já foi chamado de uma “estetização da violência” e a possibilidade de se problematizar o conceito de “retomada” tão debatido na historiografia de nosso cinema, dentre outros fatores.
Porém, a proposta do presente curso é justamente ir além do senso comum e se aventurar na exploração das relações entre Cinema e Humanidades. Partindo do princípio de que o documentário é uma tomada de posição diante do mundo histórico, ele então nos interpela sobre o nosso próprio mundo: quais são os possíveis argumentos sobre um determinado fato? De quem um filma fala? A quem ele se destina? Que distância separa as pessoas filmadas das personagens que elas se tornam? Seria suportável ouvir possíveis rivais políticos? Apesar de tudo, os direitos humanos têm uma imagem? A quem esses filmes importam?
O curso não pretende responder essas questões, mas sim torná-las, ao menos, possíveis e cada vez mais presentes nas nossas e nas suas sessões de cinema. Para tanto, a equipe do Cinemascope se preocupou em dispor as aulas de maneira cronológica em três grandes módulos: intitulado Em busca da verdade no documentário, o primeiro módulo trata dos primeiros cinquenta anos do Cinema. Os seus encontros abordam a emergência do dispositivo cinematográfico e seus impactos no processo civilizatório no começo do século XX. Uma vez localizada a emergência do conceito de “documentário”, vamos problematizar como essa prática e suas expressões fílmicas tiveram diversas finalidades históricas e suas implicações filosóficas.
O segundo módulo se chama As verdades entre ver e ouvir numa alusão às desavenças entre o Cinéma Vérité francês e o Cinema Direto norte-americano. As disputas conceituais, técnicas e estéticas em torno da economia dos recursos fílmicos são cotejadas com os acontecimentos históricos da Guerra Fria. Temas como lutas identitárias, a validação política de testemunhos e as chamadas “guerras culturais” do Brasil contemporâneo também estão entre os temas alcançados.
O terceiro e último módulo é intitulado As revelações da verdade do documentário em referência ao que já foi denominado como a “guinada subjetiva” do documentarismo contemporâneo. Nele, vamos analisar como a difusão de câmeras digitais e a criação da rede “www” ao longo dos anos noventa criou a possibilidade de cada pessoa ser produtor e emissor de imagens e mensagens na “grande aldeia global” que surgia como promessa de um mundo mais conectado e, portanto, integrado.
A ascensão de imagens de longa duração temporal, a difusão de vozes que dizem “eu falo de mim para vocês” e a exploração (às vezes excessiva) de intimidades veio de encontro a novos circuitos de difusão de audiovisual. Por outro lado, essas mesmas condições tecnológicas deram visibilidade às imagens outrora subalternas, a exemplo do cinema iraniano e palestino.
Em suma, é com grande satisfação que te convidamos para conhecer e compreender um pouco mais sobre a história dessa expressão cinematográfica tão cativante, o documentário.
Boas sessões de cinema!
Fabio Monteiro
Palavras-chave: Guzmán; Chile; Allende; Documentário; Cinema;
Comments