Getúlio, uma imagem de longa duração
- Fábio Monteiro
- 22 de jul. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 5 de out. de 2023
RESUMO: Artigo especialmente produzido para a Coleção "Ana Carolina", Ed. Rosebud, novembro de 2020.

Ana Carolina (1949), realizadora de "Getúlio Vargas", um documentário de found footage que repõe as imagens do ex-presidente à luz do contexto da Ditadura Civil-Militar
Em 1974, a euforia do chamado “Milagre Econômico Brasileiro” começou a declinar. Era o último ano do Governo Médici (1969-1974) e a engenharia institucional da ditadura civil-militar que havia alcançado os índices de crescimento com dois dígitos dava sinais de colapso devido à primeira grande crise do petróleo decorrente da Guerra do Yom Kippur em 1973. Em paralelo a isso, as denúncias de casos de tortura somadas ao auge do número de mortos e desaparecidos atingiam seu auge e, em conjunto, incentivaram a forte adesão social ao Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, nas eleições legislativas de 1974, garantindo ao partido 16 dos 22 governos estaduais.
Naquele momento, aos 25 anos, Ana Carolina Teixeira Soares foi convidada para montar um filme sobre Getúlio Vargas em função das efemérides em torno dos vinte anos de sua morte, ocorrida em 24 de agosto de 1954. A partir do convívio com Alzira Vargas e de experiências prévias com acervos fílmicos, em entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, o CPDOC-FGV, a realizadora relata que teve a oportunidade de consultar uma grande variedade de matérias, desde cartas, discos de vinil, documentos oficiais, fotografias e registros audiovisuais de diferentes suportes.
Finalizando em tempo recorde ao longo de quarenta dias, o filme conta com a participação do ator gaúcho Paulo César Pereio em uma posição ambivalente, como Getúlio Vargas e narrador da trama fílmica. Filho de militares, Pereio teria se comovido ao longo de toda produção devido às lembranças de seu pai tenentista, assim como Ana Carolina pela possibilidade de reconhecer alguns de seus familiares nas imagens relativas à inauguração da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN, durante a ditadura do Estado Novo, em 9 de abril de 1941.
A première teria sido tão comovente quanto a produção: a realizadora se lembra do frenesi de estar entre Fernando Henrique Cardoso, Mário Henrique Simonsen, Paul Singer, “Alzirinha”, a filha de Getúlio e a grande responsável pelo espólio do estadista, entre outros, na primeira exibição de seu primeiro longa-metragem. Em resumo, apesar de não ter recebido “um tostão” pela obra, ela se orgulha de ter finalizado um “filme comovente, emocionado, um filme que não se protege” e se entrega “de peito aberto”.
Essas histórias extra fílmicas iluminam o entorno de uma produção rara no horizonte histórico do documentarismo brasileiro. O Getúlio Vargas Trabalhadores do Brasilde Ana Carolina era uma produção não-ficcional sobre um estadista polêmico, um governante ora marcado pelos holofotes modernizantes decorrentes de toda a arquitetura institucional criada em seus anos constitucionais, ora marcado pelas sombras do autoritarismo e os consequentes flertes com o nazi fascismo no período do Entre Guerras. Mas, além disso, tratava-se ainda de um filme não-ficcional realizado com imagens de arquivo no crepúsculo dos chamados “Anos de Chumbo”, sete anos após os severos decretos contra a liberdade de imprensa incorporados pela Constituição autoritária de 1967.
Logo em sua abertura, o filme privilegia imagens fotográficas dos eventos em torno da morte de Getúlio, “o presidente morto” como declara o filme, a fim de dimensionar o apelo social e político da tragédia. De início, tem-se então a seguinte pergunta: o recurso às fotografias, imagens estáticas, seria um mero recurso dramático, uma forma de sublinhar a tensão diegética ou, igualmente, seria um desejo de desacelerar o curso do tempo e atualizar um Brasil eufórico em que política também era sinônimo de mobilizações populares?
Ato contínuo, o filme retoma uma perspectiva cronológica da carreira política do estadista: assiste-se à chamada “Revolução de 1930”, o período conhecido como “Constitucionalista” que vai de 1934 a 1937 e então passa-se em revista o Estado Novo (1937-1945) através das imagens do Departamento de Imprensa e Propaganda até o seu mandato efetivamente eleitoral, aquele de 1950 a 1954. A trilha sonora composta especialmente por Jards Macalé, assim como cenas de Rio, Zona Norte (1957), de Nelson dos Santos, são dois recursos que contribuem para o avanço da trama narrada pela dupla personagem de Pereio.
A pesquisa nos acervos da Cinemateca foi iniciada quatro anos antes e, apesar de seu apelo convencional provocar efeitos laudatórios sobre o estadista, a compreensão de sua atualidade ganha mais amplitude quando cotejado com outras três produções: Getúlio, glória e drama de um povo, realizada por Alfredo Palácios em 1956, O mundo em que Getúlio viveu, de Jorge Ileli de 1961-1964, mas só finalizada em 1976 e Imagens do Estado Novo, finalizada por Eduardo Escorel em 2019.
Em diálogo com a monumental biografia de Lira Neto e com as provocações de Amir Labaki, Escorel comenta as polêmicas que as duas primeiras produções teriam causado em seu próprio tempo. Vale a pena lembrar que o suicídio de Vargas em 1954 foi acompanhado de uma tentativa de golpe militar frustrado pelo legalista Marechal Lott. Golpe esse efetivado uma década depois, em 01 de abril de 1964. Assim, o filme de Ana Carolina pode ganhar uma nova linha de interpretação quando lido pela chave da temporalidade cíclica 1954-1964-1974 - e, por que não, com os eventos políticos da Diretas Já! de 1984?
Já em debate com André Singer e Carlos Calil, o filme de Escorel (que está entre os maiores conhecedores de acervo fílmico do país), composto por cinco episódios de uma hora cada, é interpretado à luz das crises institucionais brasileiras contemporâneas, a saber as manifestações brasileiras de 2013, a destituição da presidente Dilma Rousseff em agosto de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Como se pode ver, além de ser um marco na história do cinema documentário brasileiro, o Getúlio Vargas Trabalhadores do Brasil de Ana Carolina sempre será relevante por nos oferecer as condições de compreensão e superação de temas com longa duração na vida política brasileira, tais como populismo, autoritarismo e as recorrentes crises institucionais que causam.
Palavras-chave: Documentário; Cinema; Teoria de cinema; História do Cinema; Ficção;
REFERÊNCIAS:
Debate sobre o filme Imagens do Estado Novo com Singer, Calil e Escorel disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FCN2oXEdrhw&t=1326s Acessado em 04/11/2020
Verbete sobre Ana Carolina na Enciclopédia Itaú Cultural disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa547907/ana-carolina Acessado em 04/11/2020
Verbete sobre Manoel Maurício disponível em:
http://www0.rio.rj.gov.br/arquivo/pdf/guia/colecao_particular_manoel_mauricio.pdfAcessado em 05/11/2020
Verbete Getúlio Vargas, de Ana Carolina produzido pelo 25º Festival Internacional de Documentário É tudo verdade disponível em:
Verbete Memória do Cinema Documentário Brasileiro: histórias de vida disponível em:
https://cpdoc.fgv.br/memoria-documentario/ana-carolina acessado em 05/11/2020
OURIQUES, N. Um filme contra Getúlio. Subtrópicos, Ed. UFSC, Junho, 2014
ALMEIDA, C. O filme do documentário e a construção da história: Getúlio Vargas, de Ana Carolina. Artigo disponível em: http://www.uesc.br/revistas/especiarias/ed17/claudio_aguiar_almeida.pdf Acessado em 06/11/2020
ESCOREL, E. Getúlio, glória e drama de um povo – paixões em fúria. Revista Piauí, 02/09/2013. Disponível em:
https://piaui.folha.uol.com.br/getulio-gloria-e-drama-de-um-povo-paixoes-em-furia/Acessado em 06/11/2020
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