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A música como dispositivo retórico no filme "Salvador Allende" (2003), de Patricio Guzmán

  • Foto do escritor: Fábio Monteiro
    Fábio Monteiro
  • 22 de jul. de 2022
  • 14 min de leitura

RESUMO: O presente artigo analisa os usos e efeitos das composições da Nueva Canción Chilena no filme em questão e foi elaborado especialmente para o II GESTA Coloquio Interdisciplinario de Estudios de Cine y Audiovisual Latinoamericano de Montevideo. Ele é resultado da dissertação de mestrado defendida na PUC/SP e que foi publicada em 2018 pela Ed. Paco com o título "A história de Salvador Allende no cinema de Patricio Guzmán".



Formado em 1967, o grupo Inti Illimani com o grupo Quilapayún, Víctor Jara e Violeta Parra a memória da Nueva Canción Chilena. Juntos, eles moldaram o imaginário e a política do Nuevo Cine Chileno e do governo Allende (1970-1973)


Lançado em 2003, a cinebiografia “Salvador Allende” foi realizada por Patricio Guzmán partindo da premissa de que “apoiou o Governo Allende, e voltaria a apoiá-lo” (1). O filme pode ser encarado como a conclusão de um arco narrativo iniciado em 1997 com “Chile, memória obstinada” e que teve seu desdobramento em 2001 com o lançamento de “O Caso Pinochet”. O conjunto dessa chamada “segunda trilogia” (2) compõe um argumento histórico que, de certa forma, retrata os desafios e os impasses das propostas de conciliação política adotados pelos governos da Concertación durante os anos noventa e a década seguinte (3).

Dentre as afinidades entre essas obras, pode-se citar a valorização de entrevistas interativas com os depoentes, o uso de imagens e de músicas de arquivos e a presença da voz over em primeira pessoa do realizador na condução dos argumentos fílmicos. O presente artigo tem como proposta analisar como as composições da Nueva Canción Chilena contribuem para o delineamento da voz fílmica em “Salvador Allende”.

Com cem minutos de duração, o filme contém o depoimento de trinta entrevistados, dentre eles as duas filhas de Allende, Carmem e Isabela, os companheiros políticos da Unidade Popular como Sérgio Vuskovic e Volodia Teitelboim e militantes da Unidade Popular, a coalização política de seu governo. Esses depoimentos têm em comum o fato de deporem a favor de Salvador Allende, tanto no tocante às questões pessoais quanto públicas.

Os entrevistados são apresentados de maneira que haja a ideia de uma continuidade cronológica desde a filiação política do jovem Allende até o seu trágico suicídio no Palácio La Moneda. E uma entrevista em particular contribui para dar peso e evolução dramática à argumentação histórica do filme: a do embaixador norte-americano Edward Korry, que trabalhou durante as administrações de Kennedy, Johnson e Nixon e serviu no Chile entre os anos de 1967 e 1971.

Ela foi concedida ao realizador Patricio Henriquez em 1998 para o filme “Le dernier combat de Salvador Allende” e, no filme de Guzmán, ela tem a singularidade de apresentar Korry como a encarnação do imperialismo norte-americano que minou os projetos revolucionários de Allende.

Dentre os outros materiais de arquivo, o filme conta com fotografias e registros sonoros que foram produzidos em diferentes contextos históricos e que são remanejados em função das questões diegéticas propostas pelo roteiro escrito pelo próprio Patricio Guzmán com apoio da ex-militante do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR) e hoje ocumentarista, Carmem Castillo. Praticamente cinquenta minutos do filme são compostos por materiais de arquivo de catorze diferentes filmes, inclusive por cenas da cinematografia do próprio Guzmán que são manejadas como provas das muitas das conquistas, contradições e dificuldades da experiência democrática do Governo Allende.

O conjunto desse acervo fílmico e sonoro é organizado e conduzido por uma narração em voz over em primeira pessoa do próprio realizador, Patricio Guzmán. Porém, em “Salvador Allende”, a dimensão da voz over do realizador também é composta por canções da Nueva Canción Chilena, isto é, a sua voz fílmica é composta pelo depoimento pessoal do realizador embalado pelas canções de protesto que marcaram as campanhas eleitorais de Salvador Allende, assim como os três anos de seu governo.

Seguimos, então, as considerações de Nichols que considera que a voz fílmica é o modo como um documentário agencia seus elementos narrativos a fim de construir uma lógica informativa sobre determinada realidade histórica (4). Ela contempla o seu envolvimento com determinadas pessoas e eventos históricos, a sua perspectiva, a maneira singular como ele organiza seus argumentos em busca do consentimento e da adesão do espectador.

Sendo assim, em “Salvador Allende”, Guzmán organiza de modo linear elementos díspares como fotos, filmagens de murais, entrevistas de amigos de Allende e imagens de arquivo em preto e branco a fim de atribuir um sentido dramático a essa composição. E, além disso, confere ao filme coerência e unidade argumentativa através de um depoimento com forte teor afetivo, afinal ele instila a confiança dos espectadores na interpretação histórica que está sendo apresentada também com base no domínio concreto da experiência do realizador, isto é, a partir de seu testemunho.

As composições da Nueva Canción Chilena também contribuem para a sutura dramática do filme, pois todas elas estão localizadas na primeira terça parte do filme, ou seja, elas criam a atmosfera da reconstituição da carreira política de Salvador Allende e reforçam o envolvimento afetivo do espectador com o sentimento de comunidade política que estava em processo e culminou com a vitória eleitoral em quatro de setembro de 1970.

Vale destacar que o fato de as músicas estarem presentes somente nos primeiros trinta minutos do filme não quer dizer que esses grupos e suas canções não tiveram papel político durante o Governo Allende e posteriormente. Ao contrário, a inserção dessas composições somente nesse momento é uma escolha do realizador que visa reforçar o imaginário cultural e político da ascensão da esquerda chilena ao longo dos anos 1960, e as suas implicações serão desenvolvidas a seguir.

Os créditos finais indicam a participação de Ismael Oddo como conselheiro musical: Ismael é filho de Willy Oddo com a bailarina Rayen Méndez, e se uniu ao grupo Quilapayún no início de 2003 substituindo o seu pai, um dos fundadores do grupo. Nesse conjunto, ele é o responsável pelas guitarras, quenas e o piano, além de composições para as letras do líder Eduardo Carrasco (5). Junto com as canções do Quilapayún, o Inti-Illimani também contribui no fomento das atividades culturais e políticas a partir da campanha de Allende em 1964.

O Quilapayún foi formado por três jovens universitários, os irmãos Julio e Eduardo Carrasco e Julio Numhauser em 1965, e o seu nome significa “três barbas” em língua mapuche, uma referência ao visual do trio, que destoava dos padrões comerciais dos conjuntos de neofolklore da época. O grupo lançou seu primeiro álbum homônimo em 1967, quando já contava com a direção artística e musical de Victor Jara.

Por sua vez, o grupo Inti-Illimani, nome aymara que significa “sol de illimani”, surgiu da união dos jovens estudantes Jorge Cólon, o equatoriano Max Berrú, Horácio Durán, Pedro Yáñez e Horacio Salinas que atuavam em uma peña (6) organizada na Universidade Técnica do Estado. O grupo participou de algumas faixas de um disco coletivo intitulado Por la CUT, editado pelo selo Jota Jota em 1968. No ano seguinte, o grupo faz uma turnê pela Bolívia que deixará marcas profundas em sua trajetória musical latino-americanista. Em 1969, com a presença de Rolando Alarcón, o grupo lança seu disco homônimo composto em sua maioria por canções já consagradas pelas vozes de cancioneiros argentinos, uruguaios e bolivianos (7).

Dentre as canções que compõem o filme estão, em ordem de entrada em cena: “La Jardinera”, composta e interpretada por Violeta Parra; “Alturas”, composta por Horacio Salinas e interpretada por Inti-Illimani; “Canción del Poder Popular”, composta por Luis Advis e Julio Rojas e interpretada por Inti-Illimani; “La Muralla”, escrita por Nicolás Guillén e interpretada por Quilapayún; “Charagüa”, de Victor Jara e interpretada por Inti-Illimani e “La Batea”, música de Toni Taño com letras de Quilapayún.

Todos esses temas estão ligados à Nueva Canción Chilena, um movimento musical cujo desenvolvimento esteve intimamente ligado aos eventos da campanha presidencial de Allende em 1964, segundo Carla de Medeiros. Para a autora, os músicos e intelectuais ligados a esse movimento pensavam as heranças folclóricas de modo dinâmico, de modo que a valorização das práticas folclóricas deveria estar vinculada às questões sociais de seu tempo presente. Conforme suas palavras,

O movimento da Nova Canção tomou forma a partir de duas vertentes que se entrecruzaram no processo histórico. Além do encontro de artistas através da militância político, no terreno da esquerda, outro viés importante que impulsionou a constituição do movimento da Nova Canção foram os recorrentes encontros de artistas para o estudo e a apreciação de elementos culturais do folclore chileno e latino-americano (8).

As obras e os shows desses artistas fomentaram um circuito cultural latino-americano que deu robustez aos programas políticos das esquerdas, além de acompanhar e, em maior ou menor medida, determinar os seus impactos sociais. A busca por uma unidade continental e a construção de pontes culturais com seus países vizinhos foram temas que ganharam cada vez mais força e destaque à medida que as lutas políticas se acirravam (9). Dada as confluências entre a ascensão política de Allende e a construção de um imaginário pan-americanista e combativo através das canções, vejamos como isso ocorre em três momentos no filme “Salvador Allende”.

Em torno dos dez minutos de filme, Guzmán afirma que viu Salvador Allende pela primeira vez quando retornou ao Chile em 1971, após os estudos de cinema na Espanha. Mas era jovem o suficiente para perceber que “sem ele, não havia história”. O peso da experiência permite à voz fílmica encarar a ingenuidade da juventude e a perplexidade diante das promessas de implantação do socialismo pela via pacífica e democrática, pois afirma que “necessita saber quem é esse homem, e como pode ser revolucionário e democrata ao mesmo tempo”.

Uma sucessão de fotografias em preto e branco do álbum de Mama Rosa, a governanta da família Allende (10). O álbum, carcomido pelo tempo, passou mais de vinte anos enterrado e será revelado por Anita, de 87 anos, filha de Mama Rosa. Ela foi criada junto com “Chicho”, o apelido de Allende quando criança, e relembra que ele era um garoto travesso, batalhador e que já demonstrava interesse pela oratória. Um momento de intimidade que revela um pouco da personalidade do jovem Allende.

A revelação das fotografias é investida pela voz fílmica da seguinte tônica romântica “ao encontrar este álbum entrei numa festa de outro tempo, o Chile de minha infância, da doçura do cheiro e do vento nas árvores”. Isto é, como se as fotografias apresentadas fossem, também, as fotografias pessoais da infância do próprio realizador. A canção “La Jardinera”, de Violeta Parra, (11) reforça o tom melancólico de quem lavra a terra para fecundar as boas lembranças de um ente querido

Para olvidar-me de ti

Voy a cultivar la tierra

En ella espero encontrar

Remedio para mi pena

(…) Creciendo irán poco a poco

Los alegres pensamientos.

Cuando ya estén florecidos

Irá lejos tu recuerdo

(…) Y si acaso yo me ausento

Antes que tú te arrepientas,

Heredarás estas flores:

¡Ven a curarte con ellas!

A canção escolhida estabelece uma sintonia com o tema proposto pela sequência do filme: da mesma forma que o eu lírico da canção se propõe a revirar e lavrar a terra para amenizar os seus sofrimentos plantando as flores, a voz fílmica também “fez brotar” o álbum de Mama Rosa e suas fotografias que, apesar de carcomidas pelo tempo, ainda provocam “alegres pensamentos” que tornam as lembranças de Allende cada vez mais presentes.

A emergência das fotografias até então inéditas, lançam luzes não somente sobre as dimensões íntimas e afetivas da infância de Allende, mas também pode ser lida como uma iniciativa política, de resistência ao esquecimento: ao registrar as ruínas do álbum para a posteridade e ao jogá-lo para a esfera pública, Guzmán, de certa forma, lança uma crítica à pretensão da legibilidade total das imagens do presente. Isto é, ele reforça a ilusão de transparência tão importante para a palavra “transição” (12), então em voga no contexto do lançamento do filme.

Em outras palavras, ao oscilar entre a melancolia e a resistência ao esquecimento, a voz fílmica chama a atenção para aquilo que foi propositalmente ocultado pela memória construída pela conciliação social a partir dos anos noventa, para um tipo de esquecimento político e duvidoso, “aquele que sabe, mas denega, recalca e finge não saber sobre o passado”(13). Nesse sentido, seria possível seguir as considerações de Sadek ao afirmar que, dessa forma, Guzmán constrói uma geografia afetiva que questiona os limites políticos e discursivos sobre os quais se desenvolveram os pactos sociais da transição para a democracia, ou seja, um contra discurso que reflete sobre o legado da ditadura (14).

Um segundo momento que denota a relevância da canção na condução dramática do argumento histórico envolvido pelo filme se encontra por volta dos vinte e três minutos quando, novamente, uma série de fotografias em preto e branco remete a momentos da campanha eleitoral de 1964. A trilha sonora forja os ruídos da partida de um trem, enquanto a voz fílmica diz que a vida de Allende “foi uma longa campanha eleitoral”, as imagens evocam o slogan de suas campanhas, "a todo o vapor com Salvador", e o comboio para a vitória parte para cobrir as suas quatro campanhas eleitorais ao longo das décadas de cinquenta e sessenta.

As cenas do comboio cortando paisagens são do filme “El tren para la Victoria”, encomendado pela campanha de Allende ao realizador holandês Joris Ivens (15). As tomadas das populações a partir dos vagões sugerem um Salvador Allende com a força de uma locomotiva que puxa os vagões dos anseios populares. Diante da campanha de 1964, a coligação dos partidos socialista e comunista na Frente de Ação Popular (FRAP) era capaz de agrupar a maioria dos operários industriais e mineiros, sendo que a candidatura de Allende à presidência obtinha 57,4% das intenções de voto nas comunas mineiras e 44,5% nas comunas industriais. Apesar da crescente mobilização das forças dos trabalhadores, a FRAP de Allende não foi páreo para a campanha midiática em torno da candidatura de Eduardo Frei Montalva, do Partido Democrata-Cristão (16).

A voz fílmica destaca a energia e o vigor de um Allende que tinha 44 anos e que “viajou o país percorrendo bairro por bairro, casa por casa, cômodo por cômodo”. Para reforçar seu apelo popular e, de certa forma, o seu idealismo, a voz argumenta que assim “ele conheceu os chilenos de verdade, e era apaixonado por escutar, ensinar e ir formando consciência do movimento, embora soubesse que não poderia vencer”.

A sequência ganha um colorido a mais com a presença da canção instrumental “Alturas”, do grupo Inti Illimani. A flauta doce e o dedilhado no violão ganham ritmo aos poucos, e a crescente melodia soma esperança e encantamento a cada encontro de Allende com a população que o aguarda nas estações. Carmen Paz, filha de Allende, relembra que o seu pai vibrava com tudo, e que a vida ao lado dele foi um grande aprendizado. Ela manuseia fotos pessoais, e recorda que seu pai gostava de ter manter contatos direto com as pessoas. O filme justapõe as imagens do presente às do passado: as cenas rápidas e efêmeras das paisagens chilenas se somam às vozes da população gritando “Allende, Allende o povo te defende” em 1964.

O ‘trem da vitória’, enfim, chega a uma estação lotada de pessoas com as bandeiras com o X da campanha de Allende. A frenagem do trem em meio à multidão é reforçada pela desaceleração da música: a sincronia ajustada entre ambos reforça o seu triunfo popular. Allende está pronto para desembarcar nos braços do povo, e Guzmán retoma a voz do filme justamente para fazer avançar e condensar o tempo histórico, e localizar o candidato da Unidade Popular em sua vitória eleitoral em quatro de setembro de 1970, “após vinte anos de campanha”.

Uma sucessão de fotos fixas de rostos de populares alegres, ilustra o argumento de que ele não conseguiu uma maioria absoluta, sendo assim, o Congresso deveria ratificar a sua eleição. Sobre uma fotografia que demonstra Allende em primeiro plano diante de militares ao fundo, a voz fílmica pontua que a coligação de Allende incluía “marxistas, sociais-democratas e cristãos”.

Aos trinta minutos do filme, um Salvador Allende altivo sai do Congresso empoderado pela faixa presidencial. As imagens são acompanhadas pela leitura do resultado da votação: “153 votos para senador Salvador Allende; e para o senhor Jorge Alessandri, 35 votos”. A sequência é sublinhada por aplausos e gritos de “Viva Chile!”, e a celebração popular de Allende em carro aberto é reforçada pela “Canción del poder popular” (17), interpretada por Inti-Illimani. A melodia leve delineada pela flauta retoma o tom afetivo da voz fílmica que se lembra do “ar fresco, a profunda inspiração que nos unia uns aos outros, e nós ao mundo inteiro”. E o pulso forte do tambor dá o ritmo da militância popular enquanto Allende transita entre a população calorosa

Si nuestra tierra nos pide

Tenemos que ser nosotros

Los que levantemos Chile,

Así es que a poner el hombro.

Vamos a llevar las riendas

De todos nuestros asuntos

Y que de una vez entiendan

Hombre y mujer todos juntos

Porque esta vez no se trata

De cambiar un presidente

Será el pueblo quien construya

Un Chile bien diferente (…)

A “Canción del poder popular” foi composta para o disco Canto ao Programa, editado em 1970 pela Discoteca del Canto Popular, a DICAP, um selo fundado em 1968 por iniciativa da juventude do Partido Comunista, e se tornou o centro difusor fundamental das obras da maioria dos artistas da nueva canción. Quanto à música, ela estava contida em um álbum que intercalava os chamados “relatos”, trechos declamados pelo ator Alberto Sendra, com canções nas quais aos textos de Rojas se unia a música dos maestros Luis Advis e Sergio Ortega, com interpretação do conjunto Inti-Illimani (18).

A canção pretendia transmitir de maneira simples e direta os principais pontos defendidos pelo Programa da Unidade Popular. As preocupações estéticas foram postas em segundo plano, pois o importante era transmitir, com clareza e objetividade, as mudanças políticas e sociais almejadas: o poder popular (será el pueblo quien construya/ un Chile bien diferente), o anti-imperialismo (echaremos fuera al yanqui/ y su lenguaje sinistro) e a defesa da reforma agrária (la pátria se verá grande/ con su tierra liberada).

Isto é, de certa forma, é a voz fílmica quem também populariza e explica o programa da Unidade Popular através da canção. E o faz com o respaldo das imagens de arquivo que atestam o clamor popular por um Allende presidente. Um detalhe merece destaque: em meio à comoção pública enlevada pela canção, a voz fílmica sutilmente deixa a primeira pessoa do singular para assumir também, daqui em diante, a primeira pessoa do plural. Assim ela confessa que “filmávamos esse sonho brilhante com lucidez e fervor. Era uma sociedade inteira em estado amoroso”. Dessa forma, enquanto evoca o “ar fresco” e o “estado amoroso”, ela também permuta o seu testemunho pessoal em um testemunho coletivo.

Como se pode notar, as composições da Nueva Canción Chilena são manejadas em “Salvador Allende” com o intuito de autenticar um argumento histórico construído pelo roteiro de Guzmán em parceria com Carmem Castillo. Elas visam reforçar o teor documental das imagens de arquivo e atribuir ao seu conjunto um valor de prova histórica. Seguimos, então, Carrasco que afirma que as músicas são instrumentos de que o narrador dispõe para compor seu discurso fílmico: elas podem ser entendidas como uma das vozes do narrador, que podem manifestar-se como intervenção épica ou como parte da ação dramática (19).

Nesse sentido, a partir dos três momentos aqui analisados, é possível afirmar que as canções também mimetizam a atmosfera política de determinadas situações e, ao mesmo tempo, exercem uma importante função dramática ao apelarem para o sentido comunitário dos espectadores. Elas contribuem para o exercício daquela que Nichols categorizou como montagem de evidência, ou seja, um exercício de montagem que pode sacrificar a continuidade espacial ou temporal em prol da sustentação retórica dos comentários (20).

Dessa forma, através de seu depoimento confessional no registro da voz over, Guzmán também cede lugar de enunciação às canções da Nueva Canción Chilena de modo que a voz fílmica de “Salvador Allende” reflita também os anseios populares e as suas utopias políticas.


NOTAS

1 RICCIARELLI, C. El cine documental según Patricio Guzmán. Santiago, FIDOCS, 2011.

2 RUFINELLI, Jorge. El cine de Patricio Guzmán. Chile, Uqbar, 2008.

3 BLANES, J. Los tempos de la violencia em Chile: la memoria obstinada de Guzmán. 2009, p. 154

4 NICHOLS, B. Introdução ao documentário. 2012, p. 89

5 Conforme o domínio virtual oficial do grupo musical.

6 Conforme explica Gomes, a peña era um encontro musical que contava com a participação de artistas de diversas áreas que se reuniam para debater política e cultura, além de produzir um espaço para a produção e divulgação de novos artistas. GOMES, C. 2013, p. 63.

7 GOMES, C. 2013, p. 122.

8 MEDEIROS, C. 2008, p. 67.

9 GOMES, C. 2013, p. 47.

10 De acordo com Labarca, Allende costumava se referir à Zoila Rosa Ovalle, Mama Rosa, como sua segunda mãe. Mama Rosa foi companheira por toda a vida de Allende, que fez questão de reconhecer essa importância publicamente ao sair do juramento à presidência no Congresso de braços dados com a senhora de noventa anos, em 03/11/1970. LABARCA, EDUARDO, p.24

11 Letra disponível em: http://www.cancioneros.com

12 SADEK, Isis. 2013, p. 41.

13 GAGNEBIN, 2006 p. 101

14 SADEK, Isis. Idem, p. 31

15 Carolina de Amaral Aguiar autora questiona a pesquisadora Panizza a respeito de possíveis vínculos entre Allende e Ivens que teriam ocorrido em Cuba, p. 85 . Além disso, ela também registra os chilenos que participaram da equipe técnica: exceto Pedro Chaskel que estava com hepatite.

16 GARCÉS, J. 1993, p. 39.

17 Letra disponível em: http://www.cancioneros.com

18 GOMES, C. 2013, p. 129

19 CARRASCO, N. p. 74.


BIBLIOGRAFIA

BLANES, JAUME. BLANES, J. Los tempos de la violencia em Chile: la memoria obstinada de Guzmán. Revista Alpha, n. 28, Julho, 2009, p. 153-168. Disponível em: http://alpha.ulagos.cl

CARRASCO, Claudiney. Trilha musical – a música na articulação fílmica. Disponível em: http://webensino.unicamp.br/disciplinas/MU871-220116/apoio/4/Trilha_Musical_TESE_NEY.pdf

GAGNEBIN, Jean-Marie. Lembrar escrever esquecer. SP: Editora 34, 2006

GARCÉS, Joan. Allende e as armas da política. São Paulo: Página Aberta, 1990.

GOMES, CAIO DE SOUZA. Quando um muro separa, uma ponte une: conexões transnacionais na canção engajada na América Latina (anos 1960/ 1970). 2013. Dissertação (Mestrado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-28062013-130124/pt-br.php

LABARCA. Eduardo. Salvador Allende – biografia sentimental. Santiago : Catalonia, 2007.

MEDEIROS, Carla. Música Popular e disputa de hegemonia. Dissertação (Mestrado em História) Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, UFF, 2008. Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2008_SILVA_Carla_de_Medeiros-S.pdf

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. SP: Papirus, 2012.

RICCIARELLI, Cecilia. El cine documental según Patricio Guzmán. Santiago, FIDOCS, 2011.

RUFINELLI, Jorge. El cine de Patricio Guzmán – En busca de las imágenes verdaderas. Chile, Uqbar, 2008.

SADEK, Isis. Memoria especializada y arqueologia del presente en el cine de Patricio Guzmán. Revista Cine Documental, n. 8, ano 2013, pp. 28-71

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A política do testemunho, Projeto História – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP, (3), p. 71-98, 06/2005.

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