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O Cinema como fonte histórica

  • Foto do escritor: Fábio Monteiro
    Fábio Monteiro
  • 29 de fev. de 2024
  • 7 min de leitura

RESUMO: O presente artigo é o prefácio elaborado pelo Prof. Dr. Mauro Peron (PUC/SP) para o livro "A história de Salvador Allende no cinema de Patricio Guzmán", lançado pela Ed. Paco, em 2018. O livro foi resultado da minha dissertação de mestrado defendida na mesma casa, onde desenvolvi minhas pós-graduações ao longo de dez anos.


O Cinema como conhecimento. A imagem cinematográfica apresenta recorrentemente uma questão crucial: o conhecimento como atitude interrogante. Direcionado socialmente, oferecendo-se como um discurso acerca da história, o Cinema tem sido a expressão de modulações audiovisuais de diversificadas temáticas esteticamente dimensionadas, constituindo-se hoje como um extenso e diversificado construto posicionado politicamente, em sua já longa trajetória. A expansão do Cinema e de seu consumo para públicos diversos, ademais, vem estimulando a sistematização de experiências espectatoriais multifacetadas diante dos filmes, com importantes desdobramentos sobre a educação do Olhar. Nesses termos, é sensível a atenção que o Cinema vem atraindo de campos diferenciados do Saber como a Filosofia, as Ciências Sociais, a História. 



Boleslav Matuszweski (1856-1944), reconhecido como o pioneiro na análise do filme como uma fonte histórica.


É justamente nesse largo espectro que está situado este livro de Fábio Monteiro. Com formação de historiador, o autor desenha uma sensível inflexão sobre as articulações cinematográficas que o cineasta Patricio Guzmán tece no filme Salvador Allende, construindo em seu livro um resgate fundamental das diretrizes políticas do diretor, cuja trajetória investigativa já coloca uma questão de grande peso: seu conhecimento político do mundo pelo Cinema, na construção de uma representação da história do Chile.

A esse propósito, como campo do Saber, a História vem incorporando o Cinema em várias frentes investigativas, emoldurando um vinco vocabular de distintos matizes teóricos e metodológicos e – importante – alimentando polêmicas presentes igualmente no fazer cinematográfico e nas teorias do Cinema. O exemplo da utilização do Cinema como fonte, como documento imanente é particularmente sugestivo para retroalimentar as supostas incontornáveis fronteiras entre Documentários e Filmes de Ficção. Manejo delicado, trata-se de um território no qual habitam teleologias – referência incorporada no livro - cujas estéticas cinematográficas compõem um largo espectro epistêmico, movimentação de grandes embates discursivos, plasticamente dimensionados. A arena é a de uma olímpica dinâmica de interrogações, exercício subversivo fundamental.       

Se o Cinema de Guzmán constitui um testemunho da “história política chilena”, está em pauta a estatura do gênero Documentário enquanto interpretação dessa história e, por correspondência, os termos pelos quais uma clivagem entre Documentário e Ficção acomodaria uma leitura que “aproximaria” Documentário e História – alimentando um largo espectro do debate sobre a “natureza” de tais distinções, na linha de questionamentos voltados para as vinculações entre “realidade” e “realismo”, entre o ordenamento discursivo e “conhecimento da história”, incluindo a presença de uma armadura discursiva cujo emblema mais forte legitimaria o documentário como “fonte histórica” ou mesmo o documentário cuja “imanência” de “realidade” estaria, por isso, irradiando legitimidade “documental”. O leque de tais indagações é particularmente estimulado pela leitura do livro, pelo grande espectro de informações levantadas e articuladas na obra.     

E o livro nos instiga a trilhar uma investigação sobre a estrutura narrativa oferecida por Guzmán, bem como a acionar o contexto no qual cineastas travam um diálogo entre si, construindo suas escolhas estético-políticas, inclusive aglutinados no processo de construção do Nuevo Cine Latinoamericano, a partir, sobretudo, da década de 1960. Se uma geopolítica e múltiplos confrontos sociais multiescalares constituem as mais importantes matrizes de tal Cinema, as reorientações dos formatos discursivos desse Cinema fazem surgir novos sentidos das convergências entre técnica e estética, e mesmo das polêmicas envolvendo a suposta distinção entre registro e discurso, e a pretendida associação entre documentário e “revelação” de uma realidade “autêntica”.

Temos, ademais, que a importante contextualização das práticas cinematográficas de Guzmán permite a percepção do relevo estético-político de Salvador Allende, sobretudo sua importância para as atenções e ações políticas que convergiam e divergiam. A atmosfera que o livro constrói é de grande impacto, na medida em que “restitui” um espírito de engajamento dos cineastas, e seus agudos desdobramentos para a realização cinematográfica. É preciso destacar, ademais, que as referências teóricas e metodológicas de Guzmán estão pertinentemente colocadas, sobretudo na consideração do diretor (ao citar Jean-Louis Comolli) de que ‘nenhuma situação de realidade pode ser filmada sem alterar uma parte de seu estado original”. Trata-se de um posicionamento que renova as polêmicas tanto na prática cinematográfica quanto nos estudos de Cinema, uma vez que a noção de “estado original” é, ela mesma, uma convenção que busca lastrear um critério de proximidade ou de distanciamento do “Real”. Um enfrentamento sempre necessário, pois será preciso interrogar o pressuposto segundo o qual uma “ética” nos afastaria da “ficção”, como afirmado na citação a João Moreira Salles. Trata-se, afinal, de avaliar o alcance – e, portanto, o limite - da atitude “ética” que nos conduziria, com pretendida segurança, a um mundo “não ficcional”.


A narrativa, ao caminhar por tais interrogações, educa o leitor para que esteja em estado de alerta: se os testemunhos são fontes, não se pode esquecer da orientação discursiva do cineasta sobre as entrevistas e – é preciso frisar - simultaneamente, do caráter seletivo da memória dos testemunhos trazidos a primeiro plano. Novamente, se a legitimidade da ordem discursiva do Documentário estaria na “exata” proximidade com o “Real” (e, portanto, a pleiteada relação com a processualidade histórica) insinua-se nisso uma sedutora e delicada possibilidade de aproximar o Documentário de uma dimensão “científica”. Contudo, se a Ciência mesma se constitui como uma convenção historicamente forjada, será preciso interrogar o Documentário já em suas bases epistêmicas que põem o problema da relação entre discursividade e história, processo que, ressalte-se, também vai sofrer cruciais tensionamentos, por exemplo, das teorias da Linguagem do Estruturalismo e do Pós-estruturalismo (e de seus confrontos internos) em suas investigações sobre o Cinema.


Como o livro está muito acertadamente atento para as “imagens de arquivo” presentes em Salvador Allende, definindo-as como “vestígios de uma época”, a leitura desse importante trecho faz com que uma interrogação force a passagem: é preciso indagar o pressuposto pelo qual frequentemente pactua-se com uma positividade dos “vestígios de uma época” e, por decorrência, indagar o pressuposto pelo qual também frequentemente se afasta de qualquer negatividade das imagens de arquivo. Ou seja: a atitude de afastar-se do que se oculta, do que não se mostra, do que é evitado; do que é subtraído da imagem cinematográfica. A noção segundo a qual toda imagem é, simultaneamente, positividade e negatividade pode ser, certamente, negligenciada, mas este será um silencio que poderá afastar um magnífico debate. E o livro sanciona essa urgência, ao resgatar trabalhos decisivos de Derrida.


Na fundamental inserção que se segue no livro, no campo do tratamento de “imagens de arquivo”, está presente a discussão sobre a importância da montagem cinematográfica, disciplinando mais uma vez a atenção do olhar espectatorial para o trabalho de ordenamento de imagens e de sons no Cinema, levantando os parâmetros que estariam presentes na atenção investigativa do espectador e, nesse inserção, convidando o espectador a um essencial exercício de Olhar para, sobretudo, o visionamento de Salvador Allende , alertando o espectador para a dinâmica de suas próprias reorientações narrativas, em suas disposições estético-políticas. A ponderação que está em pauta nesses destaques do livro é mesmo crucial e desconcertante: a “aporia da representação do passado” assumida no curso das reflexões sobre o Cinema, agudizando a relação entre Cinema e História – um alerta para os terrenos movediços presentes na apropriação do Cinema, também pelos historiadores.


O contexto histórico é largamente disposto pelo livro, com destacado espraiamento de outras filmografias latino-americanas, bem como a inserção fundamental das esquerdas na realização musical latino-americana do período. Tais materiais conferem um forte realce para a análise do filme, conferindo um olhar bem aparelhado para a investigação da narrativa da “voz” fílmica – referência recorrente a Bill Nichols. A cuidadosa análise de Salvador Allende, ao destacar o uso das entrevistas, as imagens de arquivo e, por fim, a presença da voz over do realizador (alternando-se entre a primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural) não apenas encampa as importantes mediações entre as individualidades e a vida coletiva, mas constitui, na totalidade do corpo discursivo do livro, um fundamental exercício investigativo cuja narrativa convida o leitor a interrogar o Cinema por meio do que o autor define como a “fabricação de sentidos históricos”, para os “espaços narrativos em que se articulam palavras e silêncios, evidências e ausências, sincronias e desacordos em torno da produção de sentidos”.


O livro "A história de Salvador Allende..." que foi pioneiro na análise crítica da cinematografia de Patricio Guzmán


O que temos é não apenas uma investigação cuidadosa sobre o filme de Guzmán e as

movimentações da América Latina, com seus laços territorialmente mais amplos, mas um largo espectro de indagações estético-políticas que, talvez, possam ser apropriadas como um alerta epistêmico, para que questões dessa natureza sejam mais intensamente incorporadas por historiadores e cineastas: o questionamento dos parâmetros pelos quais as narrativas se forjam em distintos contextos. Outro alargamento interrogativo se põe, certamente, como um convite desafiador: se o Olhar se oferece como um processo de representação, sendo sempre uma mobilização historicamente forjada, a presença da mobilização da linguagem, igualmente forjada a partir de seus contextos mostraria, talvez, que a ficcionalização poderia ser a condição e o acabamento de toda narrativa. Por esse motivo, é preciso indagar se tal ficcionalização poria sob suspeita a clivagem entre Documentário e Ficção, entre Ciência e Arte, entre engajamento e alienação, na luta contra quaisquer formas de obscurantismo.

Mas esse processo interrogativo terá de enfrentar ainda outra questão, pois se os processos discursivos do Cinema podem tão frequentemente “naturalizar” o elemento ficcional, a ponto de decretar o “Real” finalmente alcançado, estamos diante de um aspecto ainda mais desconcertante: o risco de que a história se encontre em uma região abissal praticamente perdida para sempre. Mas, como no instigante livro de Fábio Monteiro, novas reconfigurações estético-políticas estão lutando contra esse quadro. Que venham novos enfrentamentos.

  

São Paulo, 19 de março de 2018.

 
 
 

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