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As inflexões do testemunho no cinema de Patricio Guzmán

  • Foto do escritor: Fábio Monteiro
    Fábio Monteiro
  • 16 de jan. de 2024
  • 10 min de leitura

RESUMO: O presente artigo fez parte da programação do COCAAL 2023, realizado em setembro do mesmo na UFBA. A comunicação problematiza as inflexões dos testemunhos presentes na filmografia do cineasta Patricio Guzmán. Como se sabe, este realizador é um cânone do Cinema Mundial e, em grande medida, a sua voz, mirada e estilo pessoais são reconhecidos como uma janela privilegiada para se compreender as memórias sociais do Chile contemporâneo. Contudo, a teoria crítica nos leva a analisar como se deu a construção do cânone a partir do manejo das diversas modulações da noção de testemunho, particularmente nas suas “três trilogias”.


QUESTÕES GERAIS SOBRE A NOÇÃO DE TESTEMUNHO

             Em primeiro lugar, é importante destacar que os testemunhos têm tido um lugar privilegiado como fontes históricas desde meados do século XX. Dentre as possíveis referências, a obra de Annette Wieviorka, A Era dos testemunhos, tem um lugar privilegiado por destacar como a captura, julgamento e condenação de Adolf Eichmann em 1961 contribuiu para a emergência do testemunho como uma forma de verdade dos subalternizados, uma prova contundente de como as vozes dos marginalizados passou a ter cada vez mais espaço não somente no campos das Ciências Humanas e Sociais, mas também nas produções culturais de massa. Dentre os exemplos, ela chega a citar as produções Raízes, sobre a biografia de Kunta Kinte em 1977 e Holocausto, produzida pela NBC em 1978.

            No cenário latino-americano, os temas relativos aos testemunhos são diversos e bastante produtivos. Dentre os aportes teóricos que foram eficientes para a realização do livro “O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens”, estão as obras de Marcio Seligmann-Silva, Jaume Blanes, Beatriz Sarlo, dentre outros.

Em linhas gerais, Seligmann-Silva nos ajuda a compreender as diferentes inflexões filosóficas que o testemunho pode expressar nas produções culturais latino-americanas. Retornado às Orestíadas, ele nos lembra dos testemunhos daquela pessoa que viu, daquela pessoa que ouviu e daquele terceiro que intercedeu, seja como meio transmissão de um saber ou como meio de conciliação entre as partes. O primeiro traz o paradigma visual, ou seja, é aquela pessoa que viu, suportou e subsistiu um acontecimento, geralmente traumático. O segundo se baseia no paradigma auricular, posto que ouviu dizer a respeito de algo e, então, seria capaz de transmitir os saberes para as gerações futuras. Por fim, o arbiter seria o árbitro, aquele que se posiciona como mediador entre as partes.

Em grande medida e, mesmo que indiretamente, a obra de Jaume Blanes, coteja estas reflexões filosóficas e seus significados políticos quando se propõe a traçar uma história dos testemunhos como formas de resistência na América Latina. Estas linhas gerais, então, nos levam a traçar um panorama de como o cinema de Patricio Guzmán – e, por extensão, o cinema chileno – lida, elabora e veicula o testemunho como um artifício diegético e político.


O realizador "Pato" Guzmán nos anos 1980


A PRIMEIRA TRILOGIA

A BATALHA DO CHILE: OS TESTEMUNHOS ENTRE A RESISTÊNCIA E A SOLIDARIEDADE

Finalizada entre 1973 e 1979, a trilogia A Batalha do Chile foi realizada a partir dos cânones do chamado Cinema Direto: câmera na mão, microfone sincrônico e a captura das contradições socioeconômicas em tempo real. A partir deste dispositivo, o filme contém entrevistas do realizador com populares, imagens realizadas pela estatal Chile Filmes e também por equipes de televisão.

A grande maioria das entrevistas realizadas pelo próprio Guzmán são com pessoas ligadas às causas populares, sejam elas do Partido Socialista que defendiam a radicalização do processo revolucionário de Allende; do Partido Comunista que defendiam as vias legais para as reformas sociais ou ainda aquelas ligadas aos movimentos populares e que caracterizam o terceiro filme da trilogia.

Porém, há uma perspectiva que foi historicamente sonegada pelas pesquisas que se dedicaram ao cinema de Guzmán: a de que, nesta trilogia, o realizador “filma o inimigo”, sendo esta uma postura que ele vai abandonar e mesmo condenar décadas mais tarde. A primeira oportunidade em que se pode notar esta questão se dá logo no começo da primeira parte, A Insurreição da burguesia, em que a equipe interpela diversas pessoas em uma multidão nas presentes nas ruas devido ao processo eleitoral de março de 1973 e houve a emergência de uma senhora indignada, que assume o microfone com um depoimento que entrou para os anais do cinema como um paradigma do reacionarismo, ao clamar por um governo “lindo e limpo” em vez do “degenerado, corrompido e imundo” governo Allende. Evocando, assim, os princípios de outras “lutas” que contavam com os “princípios da força e da saúde” como finalidades políticas.

Esta mise-en-scène­­ de “filmar o inimigo”, se repete mais adiante quando a equipe Tercer Año visita uma dona de casa vizinha da praça Baquedano e que, acanhada, confessa o voto em Jarpa (Partido Nacional). Mais tarde, na segunda parte da trilogia, O golpe de Estado, o filme maneja imagens de arquivo e dá voz às réplicas de Victor Garzena, um deputado do Partido Nacional que defende abertamente a intervenção militar; repõe a entrevista televisiva de Fernando Castillo, reitor da Universidade Católica filiado à Democracia Cristã -  pai da militante Carmen Castillo, casada com o líder do MIR, Miguel Enriquez – defendendo a ruptura com o governo Allende e, por fim, monta a transmissão televisiva oficial da Junta Militar que encerra a segunda parte, O golpe de Estado.

Como se pode notar, apesar de todas essas personagens encarnarem as forças reacionárias e instituírem um devir na trama fílmica, até o presente momento, os depoimentos dos inimigos da revolução e, portanto, antagonistas do compromisso político do filme, ou foram capturados através das forças contingenciais (as mulheres já citadas) ou são imagens dotadas de uma segunda natureza, isto é, registros que foram possíveis a partir de outros dispositivos de filmagem.

É importante destacar que a divulgação destes filmes de A Batalha do Chile foi feita simultaneamente à sua finalização no ICAIC, em Cuba. Isto significa dizer que as obras eram destinadas aos circuitos das mostras e festivais de cinema pelo mundo, sendo que as suas recepções envolveram temas ligados aos debates sobre as contradições internas das esquerdas chilenas, à solidariedade internacional ao povo chileno e meios de resistência social e cultural, como apontam as pesquisas de Carolina Aguiar e Jose Palacios.



Fotograma da primeira parte da trilogia "A Batalha do Chile" em que se vê o CCC, Comando de caça aos comunistas, demonstrando o acirramento da guerra civil


A SEGUNDA TRILOGIA

OS TESTEMUNHOS ENTRE A AUTO MONUMENTALIZAÇÃO E A CONCILIAÇÃO

Composta por Chile, memoria obstinada, O caso Pinochet e Salvador Allende, este conjunto de filmes compõe um arquivo narrativo iniciado em 1997 e finalizado em 2003 que acompanha pari passu as tensões, impasses e avanços das Comissões da Verdade chilenas. Este foi um outro fator também sonegado pela historiografia sobre o cinema de Guzmán, o fato de que esta “segunda trilogia” demonstra um desejo de interlocução tanto com os debates sociais das políticas de verdade e reconciliação quanto com os debates acadêmicos sobre a natureza social e política da Concertación.

Este foi um dos pontos de partida que nos levaram a questionar por que esta trilogia havia sido nomeada de “trilogia da memória” pelo próprio realizador em entrevista com a jornalista Cecilia Ricciarelli, em 2010. Quando se observa a manufatura de seus argumentos fílmicos, o que se nota é que existe uma pluralidade de vozes testemunhais e, portanto, de memórias ali.

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que o primeiro filme Chile, memoria obstinada começa com o próprio realizador testemunhando sobre o seu retorno ao Chile, o que demonstra o que já foi chamado de um “giro reflexivo”, de exercício de “auto referência”, mas que nós optamos por categorizar como um esforço de auto monumentalização. A partir de então, esta mise-en-scène se tornou um dispositivo recorrente em sua cinematografia a ponto de ser possível dizer que ela compõe o estilo guzmaniano.

Na sequência, ao adentrar o Palácio La Moneda disfarçado de equipe televisiva junto com Juan Osses, um ex-guarda costas de Allende, o filme evoca imagens de arquivo que provocam um efeito espectral através de suas superposições. Porém, o que nos interessa aqui é justamente a maneira como o testemunho de Juan Osses - de quem viu e sobreviveu ao golpe de Estado por permanecer ao lado de Allende até o último minuto – foi editado por Patricio Guzmán.

Em seu relato concedido à Prensa Latina em 2003[1], Juan Bautista Osses Beltrán recorda que, na manhã do golpe, foi acordado às pressas pelos colegas da GAP, trocou o seu fuzil AK pelo Sig Sauer e partiram em direção ao La Moneda, antevendo colocar em prática os treinamentos que haviam tido para a resistência armada.

Em linhas gerais, de acordo com ele, Allende tinha a consciência de que o golpe poderia ser fatal e, portanto, teria enfatizado junto aos presentes no palácio: “aqueles que não querem combater, retirem-se e deixem as armas aqui para o combate”. Uma vez derrotados, Osses foi preso e torturado no Regimento Tacna, depois levado ao Estádio Nacional e, dali, liberado no dia 24 de setembro de 1973. Dias depois, casou-se e tentou reorganizar um grupo armado socialista na clandestinidade, mas teve que partir para o exílio; primeiro na República Federal Alemã, depois na República Democrática Alemã. Após ter se formado em Ciência do Esporte, ingressou, clandestinamente, no Chile em 1983, para “retomar a luta”, mas foi preso, em 1985, e encarcerado por dois anos. Depois de ser “expulso para Alemanha”, novamente, ele retorna ao Chile em 1987.

Ao ser questionado porque teria demorado trinta anos para dar seu testemunho a respeito da história recente do Chile, Osses afirmou

Levei trinta anos para falar da tragédia do La Moneda porque meu interesse sempre foi o de regressar quando eu fui exilado do Chile. Eu assumi a missão de, além de admitir que estava vivo por milagre, ingressar o mais rápido possível à luta. Aprendi que para ganhar haveria que tomar a condução política. Eu assumi essa linha e me mantive calado, mesmo que me incomodassem muitas declarações, livros e publicações que não representavam as coisas como realmente foram. A minha ideia era retornar ao Chile e combater.

 

Posto assim, sob a ótica da memória oficial, a história pessoal de Osses revela alguns dilemas da Concertación, ao demonstrar o esforço em vão de inscrever um determinado histórico político nos debates públicos sobre a memória recente do país. O seu perfil mirista, a sua obstinação confrontacionista e o seu desejo de reconhecimento de que ainda existiriam tarefas políticas e coletivas em andamento destoam da semântica social e cultural produzida pelo consenso da “democracia protegida e autoritária”.

O seu testemunho indica, contudo, alguns impasses presentes ao longo do corpus fílmico da trilogia. Afinal, a sua filiação política e seu histórico de lutas foram elididos da trama fílmica. Esse tema não passou despercebido em seu relato, pois afirmou

Sou das pessoas que assumiram a luta armada nesse país e agora somos vetados por essa democracia. Nos últimos anos, eu me preocupei em refundar a minha família. Com esse testemunho, eu me livro de um fardo. Numa certa ocasião, eu tentei revelar alguns acontecimentos junto com o documentarista Patricio Guzmán, mas eu sempre quis que não houvesse edição e que as verdades fossem ditas. Me dei conta de que existe muito protagonismo, versões e a história foi escrita de uma certa forma. Se alguns querem justificar-se ou limpar suas consciências, eu não desejo me meter nesse problema. Só me dediquei a declarar nos tribunais para fazer justiça aos meus companheiros detidos e desaparecidos.[2]

 

Do ponto de vista oficial, talvez seja compreensível a sonegação de memórias políticas tal como a de Osses, afinal, a valorização da militância e a defesa da luta armada foram temas caros ao paradigma das memórias dos exilados dos anos setenta[3], a década da trilogia A batalha do Chile e momento em que grande parte dos relatos eram publicados no exterior, junto de fotografias e arranjos gráficos que reforçavam a necessidade de combate frente à brutalidade armada do pinochetismo.

É importante reforçar como Guzmán se posiciona tanto como um dentre os sobreviventes do golpe militar ao mesmo tempo em que assume o papel de árbitro dos outros testemunhos. Quando se analisa O caso Pinochet, todos os oito testemunhos têm seus sobrenomes elididos, provavelmente devido aos passados políticos ligados à luta armada mirista e que destoava das demandas de perdão e consenso reivindicadas pelas comissões da verdade. Daí a categorização desse conjunto de filmes como uma “trilogia dos testemunhos”.



A TERCEIRA TRILOGIA

UMA CONSTELAÇÃO FAMILIAR DE TESTEMUNHOS

A partir de 2010, o realizador se volta ao que consideramos ser uma “poética do espaço” ao propor um cinema de reflexão e contemplação a respeito dos elementais que definem a geografia chilena, a saber o deserto, a água e a montanha. Dessa maneira, os filmes Nostalgia da Luz, O botão de pérola e Cordilheira dos sonhos conformam um arco narrativo de forte apelo filosófico tecido, sobretudo, pelos testemunhos de intelectuais de diversos campos do saber, tais como arqueólogos, arquitetos, historiadores, astrônomos, artistas plásticos e lideranças indígenas dotadas de saberes ancestrais.

Se na primeira trilogia, o que mais chamou a nossa atenção foram as mise-en-scènes de quem filma o inimigo e na segunda trilogia foi a necessidade de se revisar o cânone da memória revelando os passados políticos das pessoas que foram transformadas em personagens, aqui, na terceira trilogia, foi possível perceber que os testemunhos são de pessoas familiares ao cineasta.

Além disso, o próprio realizador recorre à infância como um dispositivo narrativo para brincar com as bolas de gude, o botão de pérola, a voz das águas, dentre outros elementais que permeiam o exercício de fenomenologia que percorre os filmes. Dessa maneira, cada vez mais os testemunhos murmuram e sussurram como quem reclama uma integração à natureza, seja como quem se demonstra os limites da palavra diante das forças cósmicas.

 

CONCLUSÃO

Desde a perspectiva da literatura crítica sobre os testemunhos, é possível afirmar que a obra de Patricio Guzmán sintetiza alguns padrões de testemunho e memória que têm sido recorrentes dentre as políticas de memória latino-americanas. Em primeiro lugar, seria interessante destacar como o realizador põe em cena o “filmar o inimigo”, e que Commoli considerou como um jogo ambivalente. Afinal, dar a ver o inimigo é evidenciar e, portanto, abrir a chance de endossar seus argumentos.

Em segundo lugar, as memórias políticas e dotadas de valência ideológica são cerceadas e editadas ao longo da segunda trilogia, demonstrando como o realizador se posiciona tanto como um terceiro que arbitra quanto mais uma dentre as personagens de seus filmes. Este exercício foi fundamental para a construção de sua auto monumentalização a partir dessa trilogia.

Por fim, ao longo da terceira trilogia, o testemunho adquire um cariz poético e mingua diante das forças da natureza. A economia da linguagem verbal é reposicionada em virtude da vontade de reflexão e das exigências de contemplação das forças da natureza. De uma forma ou de outra, este conjunto de filmes reforça a centralidade dos testemunhos, da conversa e da escuta como uma forma de humanização da política e de defesa da condição humana diante dos imperativos da eficiência e da produtividade impostas pela subjetividade neoliberal.


[1] OSSES, J. Testimonio: Juan Batista Osses. Disponível em:

[2] OSSES, J. Op. Cit.

[3] BLANES, 2010 Usos del testimonio y políticas de la memoria. El caso chileno. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/autor?codigo=1941668>. Acessado em 08/2016.

 
 
 

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