A história recente do Chile sob o olhar de Patricio Guzmán: entrevista para a revista Imagofagia
- Fábio Monteiro
- 30 de out. de 2023
- 17 min de leitura
RESUMO: A entrevista a seguir foi concedida ao pesquisador Samuel Torres Bueno para a edição nº28 da Revista Imagofagia, publicada em outubro de 2023. Dentre os seus propósitos, estão a apresentação de minha carreira acadêmica e a sua relevância nas pesquisas sobre o cinema de Patricio Guzmán.
Nesse ano de 2023, completam-se cinco décadas do golpe de Estado que originou a ditadura militar no Chile. Em 1973, a democracia naquele país foi interrompida e somente retornaria após os sangrentos e repressivos dezessete anos do regime liderado pelo general Augusto Pinochet. O golpe, além de causar um longo intervalo no qual a forma de governo democrático saiu de cena, findou uma experiência política ímpar, conhecida como a “via chilena ao socialismo”, caracterizada pela ascensão de Salvador Allende e da coligação de esquerda Unidade Popular nas eleições presidenciais de 1970.
Em linhas muito gerais, segundo as palavras do próprio Allende, a proposta do seu governo era a de fomentar uma “revolução com empanadas e vinho tinto”, ou seja, uma transição ao socialismo por vias democráticas. Os “mil dias” da Unidade Popular foram uma experiência multifacetada. De um lado, havia várias disputas e ambiguidades entre a institucionalidade governista e as ações diretas dos trabalhadores e de outro, havia a forte atuação dos setores conservadores, das direitas e dos Estados Unidos que culminou no golpismo. Assim, na manhã de 11 de setembro de 1973, Allende é deposto com o Palácio presidencial de La Moneda em chamas. Poucas horas depois, uma junta militar assume o comando do país e se inicia um regime autoritário que de acordo com números reconhecidos pelo Estado chileno, prendeu, torturou, assassinou e fez desaparecer cerca de 40.000 pessoas, além de ter provocado o exílio de aproximadamente 400.000 cidadãos de acordo com a Vicaría de la Solidaridad, uma das mais notórias entidades de defesa dos direitos humanos no Chile.
Nesse sentido, a vasta filmografia produzida pelo diretor Patricio Guzmán enseja interessantes debates a respeito das experiências de períodos intimamente ligados: a Unidade Popular, a ditadura e a transição democrática no Chile. Por conseguinte, a coincidência entre o tempo da carreira deste cineasta e a efeméride do golpe, que simbolicamente fez arder a vida de milhares de chilenos com o ataque a La Moneda, é um convite à revisitação da sua premiada obra diante dos intrincados rumos tomados pela sociedade chilena contemporânea.
Por isso, convidamos o historiador Fabio Monteiro (1) que recentemente lançou o livro O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens (Jundiaí: Paco Editorial, 2022), para debatermos os vínculos dos documentários de Guzmán com interpretações históricas, sociológicas e filosóficas sobre a história recente do Chile, bem como para tratarmos de questões relativas à teoria do gênero documental e das possibilidades de pesquisa com essa vertente cinematográfica. Realizamos a entrevista por e-mail em agosto de 2023.
Samuel Torres Bueno: Você poderia detalhar a sua relação com o cinema de Patricio Guzmán, diretor cuja filmografia foi tema de seu mestrado e doutorado? Como você chegou a esse assunto? De que forma os documentários do diretor chileno tornaram-se objetos de estudo da sua dissertação e da sua tese?
Fabio Monteiro: Eu entrei em contato com o cinema de Guzmán quando do lançamento de Salvador Allende, em 2004. Naquele momento, eu estava finalizando a minha Graduação em História na Universidade Federal de Ouro Preto e fiquei bastante comovido tanto com a história narrada pelo filme como pela própria narração muito pessoal e reflexiva.
Anos depois, entrei em contato com A batalha do Chile (2) quando estudei Cinema na EICTV, em Cuba. A imersão no convívio da Escuela me chamou a atenção para a dimensão canônica da trilogia, para as suas minúcias históricas e, principalmente, para uma tomada de consciência mais clara sobre a realidade latino-americana. Isto seu deu em 2012 e, desde então, eu passei a conviver com o cinema de Guzmán tanto como cineclubista como docente levando os seus filmes para as salas de aula.
Quando ingressei no mestrado, optamos pela análise de Salvador Allende por compreender que ali havia um vinco entre a primeira e a última trilogia, isto é, desde o início do mestrado, o projeto era acessar este filme de 2004 e, a partir disso, abrir um campo de pesquisa mais amplo para o doutorado se debruçar sobre a filmografia de Patricio Guzmán.
Em outras palavras, em termos diegéticos, o filme Salvador Allende é tanto uma cinebiografia do ex-presidente quanto uma autobiografia de Guzmán, ele já contém indícios maduros da automonumentalização que o cineasta consolidou no século XXI. Por outro lado, quando se amplia o escopo, é possível compreender como este filme de 2004 se posiciona como uma espécie de dobradiça entre as chamadas “três trilogias” de Guzmán ao se posicionar, justamente, como uma forma de conclusão do arco narrativo aberto com Chile, la memoria obstinada, em 1997.
Uma vez finalizado o mestrado, a pesquisa a respeito tanto da filmografia quanto da cinematografia de Patricio Guzmán já estava bem encaminhada para uma tese de doutoramento restando, somente, promover um balanço historiográfico do que existia a respeito de sua vida e obra até o ano de 2020 e o que chamamos de “estado da arte”, isto é, uma análise mais criteriosa dos argumentos fílmicos de suas obras.
Em linhas gerais, a tese tinha um ou dois propósitos muito claros: em primeiro lugar, me familiarizar ainda mais com aquela personalidade poética e contemplativa que havia me fascinado há décadas e, a partir disso, em um segundo momento, construir uma obra cuja envergadura traduzisse as minhas formações profissionais em História, Filosofia e Cinema e que fosse capaz de dar a ver e ouvir como a cinematografia guzmaniana escreve uma determinada história da América Latina a partir do Chile.

Encontro espontâneo com Patricio Guzmán em Santiago/Chile, em 2015, quando eu fui visitar o Festival de Documentários da capital chilena (FIDOCS), fundado por ele em 1997.
S.T.B.: Você possui uma formação diversificada: historiador, professor, documentarista e autor-editor de livros didáticos. Gostaria de lhe perguntar a respeito do entrecruzamento desses campos. Qual é o impacto da experiência como realizador fílmico nas suas análises historiográficas da obra de Patrício Guzmán? De que modo a faceta historiadora interfere no seu processo de criação audiovisual? Como a sua docência recebe interferências de seu trabalho enquanto historiador preocupado com o cinema documentário e enquanto produtor desta vertente? E como a sua perspectiva docente enseja reflexões quando você produz um texto historiográfico ou um filme documental?
F.M.: A esse respeito, creio que seja interessante sinalizar que o domínio técnico do fazer cinematográfico foi decisivo para a análise fílmica. Como se sabe, é comum se ouvir dizer que um filme pode ser decupado em blocos narrativos, em cenas específicas que permitem alguma reflexão mais apurada sobre algum tema ou, ainda, a partir de determinados dispositivos narrativos que lhes são recorrentes. Em suma, as chaves de acesso à análise fílmica decorrem, em grande medida, da maneira como os filmes são recebidos pelas pesquisas e como os pesquisadores e seus repertórios se endereçam a eles.
Partindo desse princípio, a lida com os filmes de Guzmán me veio de maneira muito natural devido aos anos de convívio com eles em função de suas visualizações em salas de aulas com estudantes de diferentes idades e do próprio exercício de repetição que funda a cinefilia. Em outras palavras, o desenvolvimento da tese veio de maneira muito natural, pois o arcabouço da teoria cinematográfica já estava pronto, os recursos da história do cinema mundial já estavam fichados e, sendo assim, a parte, por assim dizer, inédita, foi o encontro com a bibliografia mais recente sobre os seus filmes e também em como os argumentos fílmicos dialogam fortemente com a historiografia acadêmica sobre o Chile contemporâneo.
Portanto, mesmo que de maneira breve, é válido dizer que o exercício do balanço historiográfico —e o consequente “estado da arte” que ele provoca— foi bem interessante para a pesquisa retornar à filmografia de Guzmán a partir das lacunas existentes na academia, e que não são poucas. Por sua vez, a literatura sobre o Chile contemporâneo é vasta e segue disponível nas redes, sendo que a parte mais trabalhosa resultou do enfrentamento de como as interpretações mais à direita —ou conservadora, como queira—, muitas vezes flerta com princípios reacionários ao interpretar o Chile a partir de um divórcio entre as dimensões econômicas e políticas da vida. Em termos práticos, é usual encontrar argumentos que defendem as métricas da macroeconomia do regime pinochetista sonegando o seu caráter de regime de exceção.
S.T.B.: Qual é a recepção das suas pesquisas no Chile? Você já teve a oportunidade de apresentá-las no país?
F.M.: A Cineteca do Chile e o seu Encuentro Internacional de Investigación já acolheram as minhas pesquisas em duas ocasiões, em 2016 e em 2018 quando apresentei um artigo do mestrado e o meu primeiro livro A história de Salvador Allende no cinema de Patricio Guzmán (Jundiaí: Paco e Littera, 2018), respectivamente. Em 2023, a Cineteca e o Encuentro abriram novamente as portas para a divulgação deste segundo livro: O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens, sobre o conjunto da cinematografia daquele que hoje é o maior documentarista chileno em atividade.
Os livros também foram muito bem recebidos por instituições como o Museo de la Solidaridad Salvador Allende, o Museo de la Memoria y Derechos Humanos e o Centro Gabriela Mistral. Todas estas instituições acolheram os dois livros em seus acervos e promoveram a difusão das pesquisas em seus catálogos e canais de divulgação. É válido notar que todas estas instituições demonstraram espanto ao receber uma pesquisa de fôlego sobre o Guzmán vinda do Brasil. Dentre as razões que ouvi a esse respeito, estão a dificuldade de se lidar com o acervo da vida e obra junto do próprio cineasta, que é bastante austero em relação, digamos, à sua memorabilia e à documentação de sua carreira —e, também, um certo desinteresse que permeia a sua obra dentro do próprio meio acadêmico chileno—.
E, em se tratando de meio acadêmico, ao longo de uma década de pesquisa, não foram poucos os contatos e as tentativas com diversas universidades chilenas em busca de intercâmbio, trocas de experiências e participações em eventos. Contudo, como sabemos, em geral, o mundo acadêmico é um campo de batalhas, uma zona tensa em que as mediações dos capitais culturais e simbólicos nem sempre são tão colaborativas e universais como os ideais revolucionários clássicos ensinaram.
S.T.B.: Tenho a impressão de que a obra do Patricio Guzmán ainda é pouco explorada academicamente e socialmente na nação em que ele nasceu. Você concorda com esse meu diagnóstico? Se sim, você poderia elencar possíveis razões que expliquem esse descompasso entre o reconhecimento internacional da filmografia do diretor e a presença relativamente diminuta dessas obras no plano local?
F.M.: Sim, é possível afirmar que tanto a filmografia quanto a cinematografia de Patricio Guzmán, mesmo que canônicas do ponto de vista do Cinema Mundial, são pouco exploradas pelas pesquisas acadêmicas ao longo da história chilena. Na tentativa de ser mais preciso, é possível afirmar que o seu cinema ganhou mais popularidade a partir de 2010, sobretudo devido às premiações conquistadas por Nostalgia da Luz. Isto faz com que seja fácil encontrar resenhas, artigos e pesquisas iniciais sobre ou a partir deste filme.
Quanto às razões para estas lacunas, talvez seja possível encontrá-las nas palavras do próprio Bernardo Menz, técnico de som da Equipe Tercer Año (3) que, em entrevista à nossa colega Natacha Scherbovsky, chegou a afirmar que os filmes de Guzmán ainda são polêmicos no Chile do século XXI, porque dá a ver semblantes que outrora apoiaram o golpe de 11 de setembro e o regime pinochetista e que ainda estão presentes no sistema político ou no establishment midiático chileno.
Visto de outro ângulo, é provável que a lida com o cinema de Guzmán no Chile signifique a tomada de uma posição social ou política mais assertiva e que envolve riscos que nem sempre o orientador, o orientando ou mesmo a pesquisa está a fim de enfrentar. A outra hipótese provável é aquela mesma já elaborada pelo próprio Guzmán em Chile, la memoria obstinada: a de que o campo cultural chileno e seus circuitos ainda estejam padecendo dos sintomas do esquecimento institucional legado pelo “transformismo pinochetista” de que fala o cientista social chileno Tomás Moulian. Em suma, talvez também seja possível afirmar que o desinteresse pelo cinema de Guzmán seja uma demonstração da força e da urgência de seu cinema que, há ao menos cinco décadas, defende a memória e a contemplação como um efetivo dever político.
S.T.B.: Um dos muitos méritos do seu mais novo livro O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens foi o de buscar desnaturalizar certos aspectos que me parecem ser recorrentes na análise das obras de Patricio Guzmán. Inicialmente, destaco a sua categorização da segunda trilogia do diretor como “a trilogia dos testemunhos”: Chile: la memoria obstinada; El Caso Pinochet (2001) e Salvador Allende, e não como a habitual imagem da “trilogia da memória” associada às conhecidas teses de Walter Benjamin. Você poderia comentar a respeito dessa problematização?
F.M.: Creio que existiriam diversas formas de responder a esta questão. A primeira delas seria reconhecendo que Guzmán é um cânone do Cinema Mundial e, como tal, ele é permeado de consensos e noções hegemônicas que consolidam o seu lugar na história. Um dos artifícios historicamente ignorados pelas pesquisas acadêmicas a respeito dele e de suas obras é a sua presença nas produções literárias a respeito de seu cinema.
Em linhas gerais, desde 1977 quando concedeu entrevista ao jornalista Pedro Sempere (4) durante a finalização de A batalha do Chile até o ano de 2020 quando lançou um livro homônimo a esta trilogia, (5) Guzmán sempre foi cineasta e escritor, realizador de filmes e editor das obras literárias que permearam e condicionaram a recepção de sua filmografia.
Diante disso, a teoria crítica exige interrogações que ainda não haviam sido feitas como, por exemplo, quem deu nome às suas “trilogias”? Por que o apelo ao “dever de memória” quando os sobrenomes de suas personagens são elididos? Será que este recurso, a elisão dos sobrenomes e a edição de detalhes de seus passados políticos, foi uma prática comum, recorrente nas produções cinematográficas ou mesmo culturais chilenas durante a Concertación? (6) Em resumo, o que teria levado o realizador a se preocupar com a curadoria da recepção crítica de sua obra ao longo de toda a sua carreira?
Uma outra forma de lidar com esta problematização está justamente na maneira como as teses benjaminianas são instrumentalizadas pelas pesquisas existentes sobre os seus filmes. É sabido que estas teses têm um forte apelo no meio acadêmico latino-americano, sobretudo no tocante à ideia de lidar com uma “história a contrapelo”...
Porém, um balanço historiográfico mais acurado é capaz de revelar como as categorias benjaminianas têm sido acionadas justamente para endossar a perspectiva guzmaniana a respeito de seus filmes; ou seja, em geral, as pesquisas acadêmicas chancelam a centralidade do cinema de Guzmán como uma espécie de chave oficial de leitura das memórias sociais do Chile contemporâneo; ou ainda, decupam seus filmes a partir da superfície, sem observar as contradições internas de suas obras.
Visto deste ângulo, pode-se tirar duas conclusões: a primeira delas é que as categorias benjaminianas se popularizaram como um meio de interpretação do cinema guzmaniano. A segunda é que elas se mostram limitadas quando os argumentos fílmicos do realizador são cotejados com a vasta e complexa historiografia sobre temas como o governo da UP, o golpe militar, as permanências do pinochetismo, a redemocratização chilena...
Com isto se quer dizer que, se existe um estilo guzmaniano, ele é mais sutil e eficiente do que se tem pensado e analisado até então, pois ele envolve o agenciamento de muitos fatores diegéticos e extra fílmicos que ora dão a ver e ora ocultam informações e saberes que demonstram uma forte preocupação do realizador com a recepção de suas obras.

Comunicação na Cineteca do Chile, em julho de 2023. Ao longo do doutoramento, foram três participações no Encuentro Internacional de Investigación del Cine Latinoamericano promovido pela instituição
S.T.B.: Uma das considerações mais instigantes contidas no seu livro O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens é o quanto as inúmeras disputas mostradas na icônica trilogia La batalla de Chile, la lucha de un pueblo sin armas —La insurrección de la burguesía, de 1975; El golpe de Estado, de 1976; e El poder popular, de 1979— de certa maneira, ainda reverberam na contemporaneidade chilena. Assim, você poderia nos dizer sobre a pertinência da filmografia de Patricio Guzmán dentro das efemérides dos 50 anos do golpe de 1973? Você poderia comentar possíveis ligações entre algumas interpretações históricas e sociológicas do pós-ditadura no Chile com os argumentos fílmicos dessa trilogia dos anos 1970 e os de Mi país imaginario (2022), último filme dirigido por Guzmán, que possui como pano de fundo exatamente as grandes marchas de 2019?
F.M.: Creio que a obra de Guzmán é e continuará sendo uma referência incontornável para a compreensão da história recente do Chile. Nela se encontram diversos temas como as tensões partidárias, os recalques sociais, a complexidade das políticas de memória e reparação históricas, as continuidades do pinochetismo, a agressividade da subjetivação imposta pelo neoliberalismo, dentre outros temas que ainda gritam no Chile de hoje em dia.
S.T.B.: No seu livro em questão, você traz duas perspectivas inéditas —pelo menos segundo a minha inferência e o meu conhecimento prévio—. A primeira corresponde à uma análise de La batalla de Chile... sob a ótica de gênero, indicando que ali as mulheres foram retratadas sobretudo como símbolo das forças conservadoras. Em El caso Pinochet (2001) e em Nostalgia de la luz, também há um problema de gênero: as filiações políticas e partidárias das mulheres postas em cena são obliteradas. Já em Mi país imaginario, todas as pessoas entrevistadas são mulheres que atuaram na linha de frente do estallido social ou são intelectuais progressistas. Gostaria que você tecesse alguns comentários sobre esse aspecto.
F.M.: Como sabemos, a crítica do cânone a partir do gênero tem sido um campo de estudo cada vez mais explorado nos últimos anos. Dentre as muitas pesquisadoras que lidam com estes temas estão Natacha Scherbovsky, Carine Dalmás, Márcia Carolina Cury, Elisa Borges, Nina Tedesco, dentre outras. A partir de diferentes escopos teóricos e perspectivas conceituais, estas são algumas das pesquisadoras que foram decisivas para que o nosso estudo jogasse luz na questão de gênero dentro da filmografia guzmaniana.
Em relação à La batalha do Chile..., é interessante notar como, além de serem minorias, as mulheres conduzem discursos que antagonizam com o argumento oficial dos filmes. Já na segunda trilogia, em grande medida elas derivam das ações institucionais da Vicaría de la Solidaridad, (7) que foi um importante arrimo humanista durante o regime pinochetista. Este fator foi importante para que pudéssemos encontrá-las na Internet e também nas redes sociais em busca de depoimentos e entrevistas, uma vez que o realizador nunca respondeu aos nossos contatos.
S.T.B.: A segunda perspectiva corresponde à conversa proposta entre o conjunto que você denominou de “trilogia da imensidão íntima” —Nostalgia de la luz, de 2010; El Botón de Nácar, de 2015; e La Cordillera de los sueños, de 2019— com a filosofia da ciência de Gaston Bachelard. Via de regra, a bibliografia mobilizada para dialogar com os filmes de Patricio Guzmán referem-se à sociologia, à história do tempo presente, à teoria do documentário, mas não às discussões filosóficas sobre a natureza a exemplo das desenvolvidas por Bachelard. Seria interessante que você discorresse a respeito deste tópico.
F.M.: Esta é outra das muitas lacunas existentes na historiografia sobre o cinema guzmaniano: até o presente momento, não achamos pesquisas produzidas em departamentos de Filosofia a seu respeito. Sendo esta uma das minhas formações, a preocupação em associar a análise fílmica com as filosóficas já estavam dadas desde a escolha do título do livro, no início da pesquisa.
Em primeiro lugar, seria interessante comentar a respeito do nome “trilogia da imensidão íntima”. Como se sabe, ela é uma referência à fenomenologia bachelardiana, particularmente ligada às obras A psicanálise do fogo (1938), A água e os sonhos (1942), O ar e os sonhos (1943), A Poética do Espaço (1957), A poética do devaneio (1960), dentre outros. Em linhas gerais, o que está em questão nesta trilogia de 2010 é um constante jogo de escalas e homeomerias que servem de artifícios para a problematização de temas guzmanianos clássicos como rastro, memória, testemunho, estado de exceção, dignidade e direitos humanos, por exemplo.
Entretanto, a nossa pesquisa ainda optou por avançar em direção aos possíveis diálogos entre a trilogia e as reflexões de Agamben e Mbembe a respeito de estado exceção explorando como os filmes se esforçam em denunciar a violência presente nas formas de subjetivação engendradas pelo neoliberalismo. Uma outra reflexão importante presente nesta trilogia é a contemplação como um recurso político, um meio de resistência à economia da atenção de que fala Byung-Chul Han. É interessante notar como o discurso verbal cede cada vez mais espaço ao silêncio e ao êxtase nesta trilogia.
S.T.B.: A partir de um olhar retrospectivo, você poderia abordar os cuidados metodológicos e éticos nessa sua tarefa de esquadrinhar o percurso de um cineasta?
F.M.: Bom, temos aí uma questão complexa e longa. Em linhas gerais, penso que, em primeiro lugar, a pesquisa deve se questionar por que se está escolhendo determinado realizador/a: as razões podem ser muitas e diversas e é muito importante ter em mente que você vai conviver com esta personagem e seus filmes provavelmente por muito tempo.
Sendo assim, em termos pessoais, como todo relacionamento afetivo, a relação com o nosso objeto de estudo, por assim dizer, deve compreender que o amor é uma habilidade e requer limites: mesmo que a obra seja canônica, é preciso não se deixar enfeitiçar por ela; mesmo que as suas razões de pesquisa sejam ideológicas ou tangenciadas por formas de ativismo, é preciso ter em mente que a escrita de uma dissertação ou uma tese demanda generosidade com os nossos leitores; e, sobretudo, é importante estar alerta diante das próprias convicções, afinal, é interessante pensar que também fazemos pesquisas e escrevemos livros que estimulem novas investigações e novos livros.
Em segundo lugar, em termos mais técnicos, eu penso que seja fundamental que se conheça a teoria crítica do cinema. E isto é algo cada vez mais raro nas pesquisas. A intuição é parte importante da investigação fílmica, da maneira como nos posicionamos para ler e ouvir os filmes; porém, nada substituiu a leitura da fortuna teórica deixada por nomes como Eisenstein, Werner Herzog, Walter Murch e Robert Bresson, por exemplo.
Por fim, em termos mais práticos, eu costumo recomendar aos meus estudantes que se questionem a respeito dos filmes como produções históricas e, também, como produtores de argumentos históricos, sociais e filosóficos. Penso que estas sejam algumas dicas valiosas que o convívio com o Patricio Guzmán me ensinou.
S.T.B.: Presumo que durante a sua tese, pelo fato de que a carreira de Guzmán apresenta um caráter transnacional, você encontrou dificuldades para acessar fontes documentais, bibliográficas e audiovisuais que pudessem auxiliar na delimitação do campo cultural chileno à época dos primeiros trabalhos do referido cineasta e na tarefa de se realizar uma síntese das publicações sobre ou com esse diretor. Se essa minha percepção estiver correta, você poderia nos contar a respeito?
F.M.: Bem, foram dez anos convivendo com a filmografia de Guzmán e, apesar de ter tido a chance de encontrá-lo por acaso em 2015 no FIDOCS —Festival Internacional de Documentales de Santiago fundado por ele, em 1997—, o realizador nunca respondeu aos nossos e-mails e correspondências durante todo este período. O acesso às suas obras se deu pelo seu canal no Vimeo, pelo seu domínio oficial que saiu do ar em meados de 2020 e, principalmente, através de amizades e pesquisas em sites e fóruns na Internet. Quanto às pesquisas a respeito dele, nós investigamos na Europa, América do Norte e América Latina, sendo possível afirmar que existem muitos artigos e poucas produções de pós-graduação sobre o seu cinema, quando se tem em mente que ele é um cânone. Seguramente, a publicação de Nostalgia da Luz, em 2010, foi um momento de grande estímulo para a popularização e visibilidade de seu cinema. Quanto à literatura sobre o Chile contemporâneo, ela é bastante abundante em livros físicos e na Internet, tanto no Brasil como na América Latina.
S.T.B.: Quando um filme ou um livro são lançados, algumas inquietações comuns giram em torno do efeito da obra no público. Nesse sentido, queria inverter essa lógica e lhe perguntar: quais foram os impactos, em geral, que os seus estudos sobre o Patricio Guzmán —e em particular do livro O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens— ocasionaram na sua vida profissional e pessoal? Como esse objeto de estudo trouxe consequências para o pesquisador e para o sujeito Fábio Monteiro?
F.M.: Em seus primeiros meses de vida, o livro tem tido uma excelente recepção crítica dentro e fora do Brasil, sendo veiculado em Portugal, no Cone Sul e em instituições como a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), o Colóquio de Cinema e Arte da América Latina (COCAAL), o circuito SESC, diversos cineclubes, revistas especializadas e canais de comunicação como o Le Monde Diplomatique.
Estou bem contente com estes resultados a curto prazo e seguro de que o livro tem uma longa vida adiante. Estimo que ele possa continuar servindo de referência para as pessoas que se interessam por Cinema, Documentário e Humanidades.
* Samuel Torres Bueno é Licenciado em História pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e atualmente é Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sendo bolsista da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Possui interesse nos seguintes temas: diálogos entre história e cinema, com ênfase no gênero documental; história do tempo presente; representação de perpetradores de direitos humanos e memórias das recentes ditaduras de segurança nacional no Cone Sul. E-mail: samueltorresbueno@gmail
NOTAS:
(1) Fabio Monteiro é mestre e doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e graduado em História e Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É documentarista formado pela Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV) em Cuba, docente há 20 anos e segue como autor-editor de mais de trinta livros didáticos. Email: contato@fabio-monteiro.com
(2) Trilogia: La batalla de Chile, la lucha de un pueblo sin armas. Parte I: La insurrección de la
burguesía (1975), Parte II: El golpe de Estado (1976), Parte III: El poder popular (1979).
(3) Coletivo de produção concebido em 1972 e liderado por Patricio Guzmán.
(4) Nascido em Valencia, em 1942, o jornalista Pedro Sempere desenvolvia uma carreira diversificada nas áreas da Publicidade, Marketing e Poesia na época em que entrevistou Guzmán em 1977. O livro “Chile, el cine contra el fascismo”, de sua autoria e de Guzmán foi editado por Fernando Torres e segue fora de catálogo para venda.
(5) Refere-se ao livro “La batalla de Chile: historia de una película”, lançado pela Editorial Catalónia, em 2020.
(6) O termo Concertación faz referência ao arranjo suprapartidário que governou o Chile entre 1990 e 2010. Ela foi formada, principalmente, pela Democracia Cristã (PDC), Partido pela Democracia (PPD), Partido Radical Social Democrata (PRSD) e Partido Socialista (PS).
(7) Criada em 1976 pelo Arcebispado de Santiago e liderado pelo cardeal Raúl Silva Henríquez, a Vicaría foi uma organização destinada à defesa dos direitos humanos e decisiva como resistência social e humanista durante o regime pinochetista.
Comments